• Colunistas

    Saturday, 27-Apr-2024 17:06:36 -03
    Mariliz Pereira Jorge

    Reforma: pague para entrar, reze para sair

    03/09/2015 10h43

    Era coisa pouca. Trocar os azulejos, um piso novo, fazer uma janela maior na varanda do quarto, uma cozinha funcional. Era coisa pouca. A gente sempre acha que é coisa pouca.

    Era coisa pouca, mas azulejo virou vidrotil, tinha que decidir entre colocar a cerâmica reta ou na diagonal. Diagonal é muito mais moderno, disse a arquiteta. Mas dá mais trabalho, resmungou o mestre de obras. Foi na diagonal. Não há nada mais sedutor do que a palavra moderno para classe média.

    Tenho pavor quando falam chique, já vejo tudo dourado. Mas basta ouvir moderno para me imaginar num loft em Nova York. Quero. Mas custa mais caro. Parcela?

    Era coisa pouca. A gente só queria uma cozinha onde coubessem todos os vidrinhos de temperos, em que as espátulas, conchas, facas, foet, pegadores, estivessem logo ali à mão, pendurados na parede, perto do fogão, como troféus do Masterchef. Chega de gavetas que parecem o buraco negro onde você tem tudo e não acha nada.

    Era coisa pouca. E de repente tinha cooktop, coifa e fogão embutido. Coifa de ilha fica super moderno. Moderno. Não resisto. É "nóis" no loft em Nova York. Custa o triplo do preço de uma coifa de parede. Parcela em 12?

    Era coisa pouca. Daí veio a cimentícia, teve que abaular o chão, refazer o contrapiso, chamar mais gente para a empreitada porque algumas coisas da "coisa pouca" não estavam no escopo. No escopo, claro.

    Você descobre que rebimboca da parafuseta é coisa pouca perto de uma reforma.

    Era coisa pouca. Mas o wannabe loft de Nova York estava parecendo escombro de guerra. Da guerra com a arquiteta, com o mestre de obras e com meu digníssimo.

    Demitimos a arquiteta. Depois demitimos o mestre de obras. Com sorte terminaremos a "coisa pouca" sem que a gente se demita, eu e meu digníssimo.

    Gente que bate boca por causa de azulejo, granito, cor da parede e maçaneta. Sou dessas. E nem sabia.

    Era coisa pouca. Queria só uma pia bonita. Descobri que granito no banheiro é coisa do passado, pra namorar pelado o negócio agora é marmoglass, silestone, corian. Tudo o dobro do triplo. Vou de vintage.

    Era coisa pouca. Queria pintar tudo, quem sabe uma parede colorida para dar uma vida, deixar mais moderno. Dei de cara com uns 80 tons de azul. Essa mulherada que gozou com 50 tons de cinza nunca viu uma cartela da Suvinil. Orgasmos múltiplos.

    Eu broxei. O que aconteceu com o azul, com o verde, com o amarelo? Tenho que decidir entre "pavão misterioso" e "azul átomo"? Quem escolhe uma cor chamada "jaca"? E "farda militar"? Depois de todo sofrimento sei que vou olhar para a parede e pensar: por que não pintei essa bosta de branco. Brilhante ou fosco? Socorro.

    Era coisa pouca. Mas então vi em várias das 324 revistas e sites de decoração que é moderno ter uma parede-lousa na cozinha do meu wannabe loft novaiorquino. Lousa, todo mundo sabe, é verde. Fácil. Claro que não. Agora temos em amarelo, rosa, azul. E preto, que é muito mais moderno. Lousa-ostentação.

    Era coisa pouca. Em dois meses eu estaria morando na casa nova. Lá se vão quatro. Prazo nesse universo é algo entre o subjetivo e o inexistente. Terça vira quinta. Quinta vira segunda. Segunda pode significar nunca, porque o marceneiro, o serralheiro, o cara do piso podem resolver não aparecer. E não avisar.

    Era coisa pouca. Eu quis ser moderna, mas continuo cozinhando do meu quatro bocas, procurando os utensílios no buraco negro da gaveta, deixando a roupa pendurada na minha microlavanderia, grudada à minha microcozinha, cheirando a peixe toda vez que decido fazer um.

    Era coisa pouca. Mas o bolso tem a sensação de que está construindo uma casa com heliponto. Reforma parece um filme de terror, você paga para entrar e reza para sair.

    Era coisa pouca, mas meu saco está é muito cheio. Eu queria ser moderna e agora tudo que eu quero é que acabe. Acabamento normal ou impermeabilizado?

    mariliz pereira jorge

    É jornalista e roteirista.
    Escreve às quintas e sábados.

    Fale com a Redação - leitor@grupofolha.com.br

    Problemas no aplicativo? - novasplataformas@grupofolha.com.br

    Publicidade

    Folha de S.Paulo 2024