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    Mariliz Pereira Jorge

    Nós

    26/11/2015 11h44

    Um dia paramos de dizer "eu" e passamos a conjugar "nós". Nós vamos, nós queremos, nós gostamos, nós não gostamos, nós estamos com preguiça, nós estamos atrasados, nós preferimos água com gás.

    Eu achava muito jeca e tinha uma preguiça enorme desses casais que se tornam "nós". Até que encontrei alguém e o "nós" foi inevitável. Me dei conta disso quando respondi "nós" em um e-mail e a reação foi: "nós, que raio de nós é esse?" Estava perdida. E, pior, estava gostando muito de "nós".

    De repente não queria fazer mais nada sozinha. Você sabe como é. Era nós pra cá, nós pra lá. Queria nós no café da manhã, nós na fila do banco, nós no jantar, nós na academia, nós no cinema, nós na happy hour, nós na hora de dormir. E eu sonhava com nós dois até quando estava acordada.

    Um dia peguei o meu parceiro de "nós" falando ao telefone, dizendo "nós", e meu estômago deu uma cambalhota e meus olhos sorriram quietinhos. Embora eu estivesse pulando dentro de mim mesma de felicidade porque é muita felicidade saber que o meu "nós" encontrou outro "nós" que estava por aí sozinho e nos tornamos nós dois. "Nós" também pode ser "a gente".

    A gente pra cá, a gente pra lá. A gente deve comer uma pizza hoje à noite, quer ir? A gente vai à praia no fim de semana, que tal? A gente está planejando conhecer Fernando de Noronha, talvez no final do ano. A gente precisa comprar uma tupperware pro queijo branco. Eu sei. Que gente chata que só sabe falar a gente.

    Passamos a conjugar "nós" porque não é apenas o guarda-roupa, as contas e a sobremesa que dividimos, mas os planos, as expectativas, as frustrações. Putz, choveu, e a gente resolveu passar o dia vendo uma temporada inteira de "Jessica Jones".

    Nem minha agenda é só minha. A gente tem algo marcado hoje à noite? A gente pode jantar na casa da Ale na próxima quarta? Me pego respondendo "a gente" em tudo. A gente adorou a festa ontem. A gente está louco pra conhecer a casa nova. A gente ficou tão feliz em poder ajudar vocês. A gente, vai, sim. Socorro.

    A gente também faz um monte de coisas chatas juntos. A gente espera o cara da NET, escolhe o tecido da poltrona, não sabe direito como funciona essa lava-louça. Mas a gente dá um jeito em tudo.
    E, para os outros, "nós" somos "o casal". Oi, casal, o que vocês vão fazer hoje? O casal gostou do filme? Sabia que o casal não perderia aquela exposição por nada. A gente vira o casal para os outros porque até na cabeça dos outros a gente já não é mais um só.

    E então me dei conta de quanto isso é bom e quanto pode ser ruim. Comecei a ficar com uma saudade louca de "nós" quando "a gente" não estava junto. Mas percebi que precisava encontrar o meu "eu" sozinha de vez em quando porque eu sempre gostei de mim assim, porque nunca foi um problema estar comigo mesma. Mas o "nós" chega atropelando e quase não deixa espaço.

    Então, tive uma reunião e depois precisei fazer umas compras. A gente se fala o tempo todo, claro. Foi quando a bateria do celular acabou. E eu tive que passar algumas horas comigo mesma, andando pelas ruas, olhando as vitrines.

    Entrei num restaurante, pedi uma taça de vinho, fiquei olhando o movimento da rua. Pensando na vida, em mim, em nós. E percebi, com uma paz, enorme que "nós" pode esperar pelos momentos que preciso, que quero, que gosto de ser apenas eu.

    E que só vale a pena dizer "nós", quando nós sentimos que nós somos mais felizes sendo nós. Porque nenhuma relação de amor é feita sem renúncia, mas nenhum amor de verdade sobrevive com anulação.

    mariliz pereira jorge

    É jornalista e roteirista.
    Escreve às quintas e sábados.

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