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    Mariliz Pereira Jorge

    Inveja branca

    03/12/2015 14h34

    Há um senso comum de que reconhecemos os verdadeiros amigos quando precisamos deles. No entanto, não sei se pela experiência de vida somada à maturidade, comecei a contestar essa verdade.

    É muito fácil ser parceiro quando estamos na merda. A gente se solidariza porque se reconhece. Na perda de um emprego, na falta de grana, num corno doído, num pé na bunda inesperado. É mais fácil relativizar frustrações e decepções. Unidos no fundo do poço. Temos experiência nisso.

    Difícil mesmo é lidar com o sucesso dos outros. Pior ainda, com os feitos dos amigos. Percebi que apenas os verdadeiros conseguem suportar as conquistas e a felicidade de uma pessoa próxima, porque essas coisas muitas vezes chegam para esfregar na cara o nosso próprio fracasso. E é com isso quem não sabemos lidar.

    A gente começa a contestar da forma mais mesquinha. Por que tudo dá certo pra fulano? Por que não acontece comigo? Como ele conseguiu isso?

    Quando nos damos conta, estamos ali fazendo parte do rol dos invejosos. Cobiçando o trabalho, o dinheiro, a casa, o carro, o smartphone, a viagem de férias, o sucesso, o casamento, a felicidade de outra pessoa, porque nos fundo a gente acha que merece tanto quanto ela. Ou mais.

    Pior, às vezes a gente acha que ela nem merece tanto assim. Ou, ainda, mentalmente diminuímos as conquistas alheias, como se aquilo fosse somente uma sorte danada. A gente ignora o quanto o outro ralou, desejou batalhou, se matou, fez sacrifícios. Mas mesmo que fosse apenas sorte não dá pra absolver a inveja.

    Invejar é humano. A gente não sabe nem andar ou falar direito, mas já invejamos o irmão mais novo mamando no peito da "nossa" mãe. A gente não quer que ele esteja ali ocupando um lugar que deveria ser nosso.

    Ser uma característica humana, no entanto, não significa que seja boa.

    O mesmo vale pra tal inveja boa ou inveja branca. Por ser dita boa ou branca não seria necessariamente inveja. E quando admitimos nos sentimos menos culpados pelo sentimento. Mas isso não nos faz menos invejosos.

    Olhar para uma amiga em um relacionamento feliz e querer algo parecido não deveria ser um problema, mas passa a ser quando aquela conquista, aquela felicidade, começa a nos incomodar a ponto de a gente não conseguir conviver com a pessoa.

    Sim, isso é inveja desmedida, doente e, infelizmente, acontece o tempo todo por aí com as melhores pessoas, nas melhores famílias e nas mais sólidas amizades.

    Dia desses fui tomar um café, que virou vinho, com uma amiga não muito próxima, mas que admiro muito. Ela está numa fase profissional excelente.

    Contou detalhes do trabalho, com os olhos brilhando, cheia de excitamento. Temos a mesma profissão e seria natural que eu invejasse suas conquistas. Uma inveja boa, claro. Inveja boa uma pinóia. Inveja boa é como fofoca do bem. São ambas nocivas.

    Fiquei aliviada ao perceber que estava genuinamente feliz pelo êxito dela. Que não tive vontade de estar em seu lugar em nenhum momento. Não pensei que poderia fazer melhor do que ela -não faria. E que até a sorte que andou ao seu lado durante as últimas semanas foi mais do que merecida, porque foi sorte que se juntou ao talento.

    Ufa, não sou uma vaca.

    Isso não significa que sou melhor do que muita gente que deve se roer, embaixo da cama de inveja, cada vez que um amigo se dá bem. É apenas reflexo do que eu conquistei para a minha vida. Um relacionamento feliz, um caminho profissional pelo qual batalhei.

    As nossas próprias conquistas nos impedem de querer viver a vida dos outros.

    Também não significa que nunca mais terei inveja de alguém. Não porque é pecado, mas porque não é saudável. Assim como a gula, quando preciso me policiar para não me servir de mais um pedaço de bolo ou mais uma fatia de pizza, com a inveja é a mesma coisa.

    A gente tem que procurar entender o que nos falta, por que nos falta, para querer o relacionamento, o trabalho, o carisma da outra pessoa. Perceber por que aquilo nos incomoda tanto. Inveja talvez só seja boa quando serve para nos dar uma chacoalhada e mexer com a nossa autoestima.

    Quando nosso amigo serve como uma fonte de inspiração para que a gente batalhe para construir nosso próprio caminho sem colocar olho gordo no do outro.

    mariliz pereira jorge

    É jornalista e roteirista.
    Escreve às quintas e sábados.

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