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    Mariliz Pereira Jorge

    Se organizar, fica tudo como está

    17/03/2016 15h05

    O Brasil, que já tinha um recorde de arremedos de cientistas políticos nas redes sociais, em horas ganhou muitos especialistas em telefonia. "Os áudios são ilegais". "São perfeitamente legais". "Partiram da Presidência". "Foi o segurança do Lula quem atendeu". "Moro tem que ser punido". "Moro foi cirúrgico".

    Não faço ideia. E se há algo foi feito na ilegalidade, que seja punido.

    Mas o estrago dos áudios contidos nas gravações do telefone grampeado do ex-presidente Lula (PT) não tem como ser desfeito –a não ser na cabeça de gente que insiste em tapar o sol com a peneira.

    O que ecoa é o conchavo entre autoridades, o escárnio em relação às instituições, a certeza de que, se organizar, fica tudo como está. Que pesadelo. Alguém que acompanhou o noticiário por horas conseguiu dormir? Acordei com uma ressaca cívica quem nem mesmo uma garrafa de uísque inteira me curaria.

    O conteúdo de alguns áudios não tem nada que implique os protagonistas em crimes, mas por si só servem para embrulhar o estômago e mostrar o tipo de governantes que temos.

    Eduardo Paes (PMDB), prefeito do Rio de Janeiro, cidade onde moro, conseguiu em um telefonema a proeza de menosprezar a cidade de Maricá e por tabela seus moradores, e destilar seu desprezo por pobres, no melhor estilo Caco Antibes, o personagem de "Sai de Baixo".

    "Agora, da próxima vez, o senhor me para com essa vida de pobre, com essa tua alma de pobre, comprando esses barcos de merda, sitiozinho vagabundo", disse o prefeito.

    Um parênteses aqui: mas o sítio, afinal, é de Lula, prefeito?

    Nem a presidente Dilma e o governador do Rio Luiz Fernando Pezão (PMDB) escaparam, taxados de mal humorados pelo prefeito, ao declarar sua preferência em realizar a Olimpíada ao lado de Sergio Cabral (PMDB) e Lula.

    Ainda sobrou tempo para criticarem a Lava Jato. Lula diz que os investigadores se "sentem enviados de Deus" e que é preciso "colocá-los" em seu devido lugar.

    Eu fico imaginando que lugar seria esse, se não o de investigar.

    Em uma conversa entre Lula e Jaques Wagner (PT) os dois ironizam o fato de Marta Suplicy (PMDB) ter sido chamada de puta, vagabunda e vira-casaca nas manifestações do dia 13 de março. "É bom pra nega aprender", diz Wagner.

    Acho engraçado que é o tipo de atitudes atribuídas às pessoas que não são pró-governistas. Se você não tem uma estrelinha no peito cai automaticamente na vala dos machistas, racistas, homofóbicos, xenófobos. Se você não se rotula de "esquerda", não ganha o crachá de mensageiro da paz.

    Ah, mas é um papo entre amigos, e entre amigos a gente fala coisas que não diria publicamente. Verdade. Mas alguns desses amigos estão sendo investigados –e sabiam disso– e não tiveram o pudor de mudar o palavreado ou o teor das conversas, porque, certamente, na cabeça deles, se organizar, fica tudo como está.

    Não demorou para as pessoas começarem a se digladiar nas redes sociais e nas ruas, onde houve registros de violência. Em um vídeo, um casal pró-governo, que passava pelo meio da manifestação na Paulista, teve que ser escoltado por parte dos manifestantes para que não fossem linchados por outros. Eles provocaram, disseram. Todos errados. Os que provocaram, os que reagiram.

    Nas redes sociais as amizades desfeitas devem ter batido recorde na noite de ontem. Os bate-bocas proliferaram madrugada a dentro. Ninguém mais está aberto ao diálogo. Todos mergulhados em suas certezas. De um lado gente comemorando o nome de Aécio Neves (PSDB) na delação de Delcídio (PT), do outro pessoas festejando a revelação dos áudios que envolvem Lula.

    Não há nada a celebrar. É tudo muito triste. Quando deixamos paixões e ódios de escanteio, o sentimento que prevalece é de impotência. Muita gente vê um sonho ruir. Outros têm a certeza de que tudo sempre foi uma fraude. Em comum, todos num barco à deriva.

    mariliz pereira jorge

    É jornalista e roteirista.
    Escreve às quintas e sábados.

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