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    Mariliz Pereira Jorge

    Crie um jumento, mas não crie expectativas

    07/07/2016 02h00

    Crie um jumento, um cavalo alado, um bode vesgo, um pônei maldito, mas não crie expectativas. Estava escrito na porta de um banheiro sujo, fedorento, com papel higiênico transbordando da lixeira, chão escorregadio e torneira pingando. Não sei por que ainda acredito que terei a sorte de encontrar um lugar limpinho às 3h da manhã, numa festinha animada, com gente esquisita e ruim de mira na privada.

    Está na moda não criar expectativas. Ou pelo menos falar que não se deve criar expectativas. É o remédio contemporâneo para evitar frustrações, decepções, ilusões e tristeza. Tem quem tome Prozac sem necessidade, tem quem evite expectativas. Receita de vidinha chulé, sem as emoções de uma montanha russa. Não gosto de montanha russa. Tudo bem, mas também não precisa viver numa reta entediante e sem fim. A vida precisa de solavancos.

    Gente que espera alguma coisa da vida e das pessoas tem um jeito no olhar de quem acabou de transar na escada de incêndio. E ainda foi bom. Gente que espera alguma coisa da vida, em geral faz alguma coisa e não cruza os braços na esperança que seus desejos de amor, atenção, céu de brigadeiro, desconto de 50%, estrada vazia, avião no horário sufoquem carências emocionais.

    Vale esperar que ligue, que se importe, que lembre, que fique mais um pouco, que namore, que case comigo. Que diga eu te amo, tenho saudade, quero te ver de novo. Amanhã. É gostoso imaginar que alguém vai bater na porta ou lhe procurar no meio da multidão.

    Difícil não esperar que os amigos sejam sinceros, que não estejam sempre ocupados ou cansados, tenham tempo para um café ou uma tarde inteira, não me deem calote, aceitem convites de última hora, perdoem meus erros e deslizes.

    A maioria sonha com aumento, bônus, reconhecimento, promoção, ganhar prêmio, cadeira giratória, máquina de Nespresso, uma sexta de folga por mês, home office semanal, peru no Natal, chocolate na Páscoa, chefes camaradas, colegas parceiros. Tudo certo.

    Não é demais querer que faça sol, a neve esteja fofa, o dólar caia, tenha papel para o passaporte, upgrade, ver golfinho, elefante, boitatá, o florescer das cerejeiras, aurora boreal, que seja época de melancia, lagosta, trufas, comer e beber sem engordar, que o paraquedas abra.

    Claro que não adianta só querer. A vida não funciona como no livro "O Segredo". De pouco adianta só pensar positivo, fazer planos, anotar no caderninho, avisar o universo que você está pronto. Mas viver sem expectativa é viver mais ou menos, é como fumar maconha e não tragar. Pra quê?

    Claro que as pessoas não ligam, não se importam, ignoram, esquecem, enganam, mentem, traem, trapaceiam. Mas esse é um problema delas e diz apenas sobre o tipo de gente que são. Não sobre o tipo de gente com quem se relacionam.

    O problema não é ter expectativa, mas saber lidar com ela. A gente pode ficar triste, devastado, sentir-se otário, ingênuo, sonhador, quando as coisas não saem como esperamos. Ninguém gosta de levar rasteira, furo no olho, ser desprezado. Mas nenhum de nós nasceu com a promessa de ser feliz. Felicidade acontece para quem não tem medo de colocar a bunda na janela.

    A única expectativa que não vale mesmo ter na vida é encontrar um banheiro limpo, às 3h da manhã, num boteco. Daí já é demais. Criação de bode vesgo deve ser mais fácil.

    mariliz pereira jorge

    É jornalista e roteirista.
    Escreve às quintas e sábados.

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