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    Mariliz Pereira Jorge

    O perigo de mandar mulher lavar louça

    03/11/2016 02h00

    Algumas das decisões mais importantes que tomei na vida aconteceram no momento em que areava panela. Quanto mais craca, mais os argumentos se solidificavam e as certezas cresciam. Quanto mais louça na pia, mais eu crescia nas convicções.

    Tem gente que vai ao cartomante. Há quem peça opinião dos amigos. Há os que encontram as respostas no psicanalista. E até quem resolva tudo no cara-ou-coroa. Eu tomo decisões lavando prato. Depois de anos de divã, é verdade. O divã me deu discernimento, mas quem me dá coragem é a pia.

    Não estou sozinha. Conheço mulheres que mudaram suas vidas depois de esfregar muita frigideira. Quem encara uma boa pilha de pratos, meu amigo, é capaz de qualquer coisa, de mudança de emprego a divórcio.

    Você está lá, tranquilão, e um dia a mulher chega, do nada, e diz que vai embora. Não, não foi "do nada". Não, ela não está louca. Ela lavou louça o suficiente para perceber que era infeliz. Um dia olhou para os dedos murchos da água com detergente, percebeu que a vida estava mais pesada que uma Le Creuset e resolveu ir embora.

    Você está lá, tranquilão, e um dia a mulher entra na sua sala e, do nada, pede demissão. Não, não foi "do nada". Não, ela não está de TPM. Ela areou uma montanha de panelas e em tudo que ela pensava naqueles momentos era mudar de profissão, de estilo de vida. Foi quando olhou para as travessas da Tramontina, que descansavam no escorredor, tão brilhantes que pareciam espelho, pensou: eu posso.

    Não adianta jurar amor eterno, pedir desculpas, dar um vidro novo de Alfazema. Não adianta oferecer aumento, bônus, plano de saúde black. Decisão tomada na bancada molhada da pia não tem volta. Aquele frio na barriga não é só água respigada com molho de macarrão, é a possibilidade de novas possibilidades.

    Lavar louça não serve apenas para chutar o balde. Ou seria a panela? Enfrentar a gordura que sobrou daquele pato suculento, nos ajuda a organizar a bagunça mental na qual vivemos. Pesquisas dizem isso. Dizem o que as mulheres, em sua maioria, já sabem faz tempo.

    Detesto lavar louça. É terapia compulsiva. Não é só a montanha de louça que a gente encara, mas a pilha de situações mal resolvidas, experiências frustradas, desejos, sonhos, medos e fugas. Ali, com o Bombril na mão não tem como fugir, a não ser limpar a sujeira da pia e organizar a bagunça da cabeça. É uma trabalheira.

    A gente olha a travessa da lasanha, arregaça as mangas, liga no automático e os pensamentos focam o que realmente interessa. Ou o que realmente incomoda. Não tem televisão, não tem Facebook, não tem WhatsApp para distrair.

    E assim, entre uma panela de arroz e uma travessa de assado, pensamos. Da forma mais profunda e, por vezes, dolorida. E decidimos romper ou estreitar laços. Resolvemos ir embora ou ficar. Recomeçar ou reconstruir.

    Foi limpando a comida nojenta do ralo da pia que resolvi me separar. Quando você compara seu casamento com a parte mais suja da cozinha é porque ele já foi pelo cano.

    Foi olhando a cozinha toda limpinha depois de um jantar, que foi pela madrugada adentro, que percebi como sou feliz no meu casamento atual. Entre uma wok suja e uma taça de vinho cheia fui surpreendida pelo marido, dançando. Rimos, rodopiamos juntos, terminamos a louça. E o vinho.

    Cozinhar, dizem, é um ato de amor. Limpar a sujeira da cozinha é um ato de coragem. É preciso dela para encarar nossos silêncios e angústias enquanto a água escorre. Antes a água do que a vida.

    Ninguém precisa concordar com essa teoria. Até porque lava-louça está aí para isso também. Para passar por cima dos problemas quando não temos disposição para eles. O que me faz lembrar de como acho graça quando alguém me manda procurar uma pilha de louça porque não concorda comigo. Mariliz, que texto ridículo. Quanta baboseira. Tem um tanque de roupa lhe esperando.

    Cara, você não sabe do que é capaz uma mulher que lava roupa em tanque.

    Eduardo Knapp/Folhapress
    SÃO PAULO, SP, BRASIL, 24-08-2011, 21h11: Louça suja acumulada para ser lavada. (Foto: Eduardo knapp/Folhapress)
    mariliz pereira jorge

    É jornalista e roteirista.
    Escreve às quintas e sábados.

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