• Colunistas

    Saturday, 18-May-2024 15:18:10 -03
    Mariliz Pereira Jorge

    Quem mandou transar?

    01/12/2016 14h58

    Ilustração Adão

    Nunca fiz um aborto e nas poucas vezes que pensei que pudesse estar grávida não seria uma opção. Mas o que vale para mim não necessariamente serve para qualquer outra mulher. Por uma simples razão: porque a vida de outra pessoa não me diz respeito.

    Por isso, sou 100% a favor da descriminalização do aborto. E ser a favor de legalizar algo que apenas pune, violenta e penaliza as mulheres num momento tão frágil, não significa achar super legal, a melhor decisão do mundo, uma forma de contraceptivo (é sério que tem gente que acha que todo mundo vai trocar a pílula pelo aborto?), ou qualquer outra bobagem que a turma do contra gosta de propagar por aí.

    Levanto bandeira, divulgo campanhas, escrevo posts, decepciono leitores, aborreço conhecidos, sou xingada, deletada e bloqueada. Faz parte. Garantir o direito de outra mulher decidir sobre seu corpo, seu futuro, é uma briga na qual vou entrar sempre.

    Eduardo Knapp-24.out.2006/Folhapress
    Médico faz exame de ultrassom em uma paciente grávida de cinco meses
    Médico faz exame de ultrassom em uma paciente grávida de cinco meses

    Os opositores do aborto há muito deixaram os argumentos de lado. Questões essenciais já são menores nos debates. O que essa turma quer, e fica cada vez mais evidente, é vingança. Da mulher, claro. E a mulher é um alvo muito fácil.

    As opiniões são sempre despidas de empatia, o único sentimento que transborda é raiva. Defensores da vida querem a todo custo que uma mulher pague com um filho indesejado, porque transou, porque abriu as pernas, porque gozou, porque se divertiu. Porque a culpa de ter engravidado é só dela.

    É raiva da vadia, que saiu dando por aí e não se preveniu. As pessoas babam enlouquecidas só de imaginar que uma mulher faça sexo, que use seu corpo para ter prazer, que faça com ele o que quiser. Vadia. Quem mandou transar? E agora vai pagar pelo seu gozo com um filho que não pode ou não quer ter.

    Tem que pagar, não importa em quais condições engravidou. Se a pílula falhou, se a camisinha estourou, se o parceiro se recusou a usar preservativo, se foi estuprada pelo próprio marido. Não importa. Essa pilantra tem que pagar. Vadia.

    Não quer engravidar? Não transe. Quem mandou ficar de quatro? Quer se divertir sem pagar o preço? A culpa é toda sua e o castigo é ter um filho que não pode sustentar, que não tem idade para criar, que não consegue educar sozinha. Ou isso ou cadeia, que é o que você merece, sua assassina.

    Os justiceiros da moral e dos bons costumes se dizem pró-vida e argumentam que a da mãe não tem mais valor do que a do feto, mas bradam aos quatro cantos que os defensores da descriminalização do aborto deveriam ter sido abortados.

    Se dizem pró-vida desde que esta vida não bata no vidro do carro pedindo dinheiro. Desde que essa vida não venha junto com a empregada e atrapalhe o dia da faxina. Desde que essa vida não se torne bandido porque, você já sabe, "bandido bom é bandido morto".

    É uma empatia sem fim, como se pode ver. O importante é não transar, não engravidar e não encher o saco dos outros com questões tão simples quanto a de exercer o direito individual de legislar sobre sua própria vida e seu corpo.

    Na dúvida, não transe. Vai que engravida. Vai que você mora no Brasil. Vai que tem uma turma prontinha para jogar pedra em você. Quem mandou transar?

    mariliz pereira jorge

    É jornalista e roteirista.
    Escreve às quintas e sábados.

    Fale com a Redação - leitor@grupofolha.com.br

    Problemas no aplicativo? - novasplataformas@grupofolha.com.br

    Publicidade

    Folha de S.Paulo 2024