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    Mariliz Pereira Jorge

    Trabalhar demais é cafona

    20/04/2017 02h00

    imging /Shutterstock
    Insatisfação no trabalho é real e parece estar crescendo
    "Qual é o intuito de trabalhar mais do que precisamos para sobreviver?"

    Quantas vezes você já se pegou dizendo que não tem tempo para nada, que só trabalha, que precisa descansar no fim de semana? Passei boa parte da vida adulta me achando finalmente adulta porque ficava mais tempo dentro de uma redação do que em casa ou aproveitando a vida. Devorava sanduíches enquanto digitava (sabia que o teclado é um dos lugares mais contaminados?), engolia salgadinhos gordurentos dentro de carros de reportagem, jantava pizza e finalmente caía morta no sofá sexta-feira à noite.

    Era moda ser workaholic e andar com um ar deslumbrado de superioridade por ser ocupada demais, como se falta de tempo para todo o resto fosse sinal de sucesso. Qual é o intuito de trabalhar mais do que precisamos para sobreviver? Acumular dinheiro, fama, sucesso? Não, obrigada.

    Nesta quarta (19), uma amiga comemorou o aniversário na hora do almoço em um restaurante indiano. Quarta-feira é um dos meus dias mais complicados da semana. Há dez anos, eu apenas diria, sinto muito. Há dez anos, eu perdia almoços, jantares, festas de amigos, reuniões de família, happy hours. Perdia o dinheiro da academia, do curso de cerâmica, da drenagem linfática. Perdia sessões de cinema, de teatro, shows. Vivia com cara de quem tinha sido atropelada pelo calendário. Reclamava de dores no corpo, de enxaqueca, de gastrite.

    Nesta quarta (19), fiz uma pausa no trabalho e fui comemorar o dia especial de alguém querido. Tomamos umas tacinhas, comemos sobremesa, brindamos seu aniversário. Quero poder estar com amigos quando eles querem minha companhia, não apenas quando posso ou o trabalho permite.

    Ser ocupado era cool, era chique, era o que se esperava da maioria das pessoas bem-sucedidas. Trabalhar demais hoje, veja, sem necessidade, é uma das coisas mais cafonas do século 21. É claro que o mundo está cheio de gente que concilia trabalho e faculdade, se entope de frilas para completar o orçamento, vive fases em que os projetos se multiplicam e se acumulam. Fases. Errado é fazer disso um estilo de vida. Quando alguém diz que trabalha o tempo todo logo desconfio que é explorado, ambicioso demais ou só incompetente.

    É jeca que alguém ainda veja algum glamour em trabalhar 24 horas por dia, sete dias por semana e se orgulhe disso. A era dos super busy já era. Não há gente mais desinteressante do que aquelas que trabalham demais.

    Durante anos eu terminava o que tinha para fazer e passava horas enrolando em frente ao computador porque ninguém ia embora. Aquele povo não tinha clima em casa, mas eu tinha amigos divertidos, juventude, uma coleção de namorados para administrar e vestia 38. Passei a catar minha bolsa e tchau.

    Fazia isso quando trabalhei em uma das maiores revistas do país. Pegava mal, minha chefe era só cara feia, inventava pautas às 23h quando eu já desligava o computador e logo deu um jeito de se livrar de mim, mesmo que eu entregasse o trabalho lindamente e no prazo. Tive vontade de perguntar se ela queria uma boa repórter ou uma pajem.

    Durante um tempo eu me achava só rebelde e tentava me enquadrar, até perceber que o mundo em volta é que estava todo errado. O crachá, o status, o dinheiro, nada daquilo faz sentido, se não tivermos o que já é considerada a "mercadoria" mais valiosa do século 21: tempo.

    Luxo nos dias de hoje é ter disponibilidade para pegar os filhos na escola, fazer atividade física, meditar, encontrar os amigos para uma cerveja em plena terça, dormir o suficiente, não fazer nada. É ter flexibilidade para trabalhar alguns dias em casa, planejar seu horário, gostar do que faz, ganhar o suficiente, não mais do que isso. É possível que você passe a ter um rendimento menor, seja menos requisitado, não seja promovido. É uma escolha.

    A gente anda tão acelerado que não se permite nem sofrer. Perdemos trabalhos, amores, animais de estimação, pessoas queridas, engolimos o choro e atropelamos o luto porque sempre tem alguém dizendo que a vida segue. E com isso vamos socando tristezas e frustrações dentro do coração porque não damos tempo para que a dor complete seu ciclo e vá embora.

    A gente fica tão viciado em ser ocupado que não sabe bem o que fazer com o tempo quando o temos de sobra. Muitas vezes só me dou conta de que o dia passou e não fiz nada quando já escureceu. Falta de habilidade para administrar o lado bom da vida.

    Não é fácil reprogramar a velocidade em que vivemos. Sempre haverá culpa, porque existe cobrança. Mas de vez em sempre é bom a gente reavaliar o que tem no menu do nosso dia para ter certeza de que a escolha é consciente e perceber o que é prioridade na vida. Ter tempo para viver deveria estar no topo da lista de todo mundo.

    mariliz pereira jorge

    É jornalista e roteirista.
    Escreve às quintas e sábados.

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