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    Mario Sergio Conti

    O patrão cordial e a vida curta

    15/11/2013 03h00

    Nas jornadas de junho, saímos da frente dos computadores. Fomos do mundo virtual para o real, onde assumimos riscos para atacar a ordem. A agitação foi detonada pelos jovens do Movimento Passe Livre, e milhões os seguiram. Depois de 20 anos, a plebe voltou com formas inéditas de manifestação. Como o perigo mobiliza, eis aí os black blocs.

    "O Patrão Cordial", que está em cartaz no Sesc Belenzinho, começou a ser preparada antes do terremoto e estreou depois dele. Mas é à luz da nova agitação que a peça deve ser vista, ainda que a arte não tenha o mesmo tempo do comentário político. Isso porque o grupo que a apresenta, a Companhia do Latão, se filia ao teatro épico de Bertolt Brecht, cujo engajamento na luta social é a pedra de toque.

    "O Patrão Cordial" parte de duas matrizes. Uma é "O Senhor Puntila e seu Criado Matti", peça de Brecht em que o assunto é a relação entre proprietários e empregados. A outra, "Raízes do Brasil", ensaio no qual Sérgio Buarque de Holanda criou o conceito do "homem cordial": a interação na qual o sentimento e o favor sobrepujam a impessoalidade da lei.

    Trazida pelo diretor Sérgio de Carvalho da Finlândia para uma fazenda no Vale do Paraíba, a ação foi deslocada para os anos 1970 do século passado. O patrão Cornélio é generoso e cordial quando bêbado, e explorador calculista nos períodos de sobriedade. Sua filha, Vidinha, está prestes a se casar com um homem pelo qual não tem afeto, e se interessa por um empregado, o motorista Vitor.

    O enredo é de comédia e a peça diverte. A ausência de cenários, aliado ao fato de alguns atores representarem diversos papéis, evita a identificação com eles e as facilidades do gênero. O primado da inteligência, no qual o espetáculo investe, é uma raridade na arte atual. O elenco conta com uma atriz de talento formidável, Helena Albergaria. A recusa do grupo ao comercialismo é tocante.

    Mesmo assim, "O Patrão Cordial" parece anacrônico, adquire ar de museu. Não porque inexista choque de classes, o ponto de fuga do teatro brechtiano. Mas a filha do fazendeiro que se apaixona pelo motorista caberia numa novela de horário nobre, pelo clichê melodramático. Num Brasil de agronegócio generalizado, aproximar patrões e trabalhadores para a relação pessoal, como faz a peça, é buscar refúgio nas boas certezas do passado.

    Para piorar, o noivo da moça rica é pródigo em trejeitos afeminados, enquanto o motorista é um boa-praça parrudo e cheio de bom senso. O lugar-comum, que tem seu lado de realismo socialista, lembra estereótipos de "A Praça é Nossa" pelo subtexto de preconceito. O público ri porque o machismo é visto com naturalidade, e não porque a peça o satirize. Nesse ambiente, uma canção com frases do "Manifesto Comunista" soa como lembrete vazio: somos de esquerda.

    É tarefa da arte introduzir caos na ordem, e "O Patrão Cordial", por meio de um materialismo acadêmico, faz o contrário. A plateia da Companhia do Latão sai do teatro com o progressismo reconfortado, achando o que já achava antes, que o homem cordial é uma balela frente à divisão da sociedade em classes. Não há esclarecimento nem provocação.

    Reduzir "O Patrão Cordial" a esse fracasso não é tudo. A contraposição da montagem às monstruosidades do entretenimento diz algo sobre as dificuldades do presente. Se o Passe Livre abriu as comportas, por que não o Latão, a esfera artística?

    Vislumbra-se essa abertura no final da peça, num momento de real distanciamento brechtiano. É quando a magia da arte se liberta da mentira de ser verdade. O ator Renan Rovida diz ao público que, se aquilo fosse teatro, a plateia seria de pessoas que gostariam de mudar o mundo. Mas isso não é teatro, é vida, e ela é curta.

    mario sergio conti

    Autor de 'Notícias do Planalto', obra que dissecou as relações entre a Presidência de Fernando Collor e a imprensa, começou sua trajetória como jornalista na Folha em 1977. Escreve quinzenalmente aos sábados.

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