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    Mario Sergio Conti

    Nunca houve mulher como Gilda

    16/05/2014 02h00

    Gilda de Mello e Souza não gostava que a chamassem de Dona Gilda. É o que ela conta em "A Palavra Afiada", lançado há pouco pela editora Ouro Sobre Azul. Preferia que usassem o seu prenome ou você. Mas "Dona Gilda" pegou, sobretudo entre os que a conheceram bem, seus alunos e discípulos.

    É um tanto esquisito. O tratamento cerimonioso e retardatário, reservado a donas de casa, é empregado pelos íntimos —e todos eles estão mais que cientes do seu pioneirismo avançado. Ela foi uma das raras mulheres num ambiente masculino, o das primeiras turmas da Faculdade de Filosofia da USP, nos anos 1930. Falava de igual para igual aos colegas. Fez carreira universitária como eles. Sua prosa é de primeira água.

    A ensaísta explica por que preferia ser tratada por Gilda: "Me deixa menos datada. Não gosto de ser velha. Não vivo periquitando por aí, mas acho a velhice muito dura. A velhice é a antecâmara da morte".

    Em vez de teorizar sobre a igualdade entre os sexos ou a condição feminina, ela adota uma entonação confessional que tem laivos de vaidade (feminina?), é leve ("periquitando por aí"), mas pesada ("antecâmara da morte").

    Tinha 74 anos quando disse isso. Contou também que algumas amigas começavam a aprender grego. "Acho falta do que fazer", ela comenta. "Não vai servir para nada."

    Quem fala? A intelectual que quer se aperfeiçoar, mas nos limites impostos pela idade, Gilda de Mello e Souza. A senhora se ocupa do aqui e agora, Dona Gilda. A mulher que se queixa da velhice, Gilda.

    As três vozes estão indissociáveis em "A Palavra Afiada". Organizado por Walnice Nogueira Galvão, o livro reúne escritos inéditos, entrevistas perdidas, resenhas, cartas, conferências e ensaios. O material é díspar, o que o une é o ar de família antiga e paulista.

    Há pudor em resguardar o que ocorre intramuros. Reminiscências da fazenda, da São Paulo provinciana e dos professores franceses. Pessoas chamadas Cotinha Moura e Vovó Iaiá. Conversas sobre caseado, amanteigados, pontear meia, olho de sogra, pregar botão, pão feito em casa e passar a roupa.

    O ar de família se estende à plêiade de elefantes da cultura com quem conviveu: Lévi-Strauss, de quem foi aluna aos 18 anos, Roger Bastide, Paulo Emílio Salles Gomes, Décio de Almeida Prado. O recato faz com que fique de fora a família propriamente dita. Nada é dito de Antonio Candido, com quem foi casada por mais de 60 anos.

    Na análise de obras de arte, Gilda de Mello e Souza é objetiva. Mas a sua capacidade de descrevê-las as traz para bem perto do leitor, transformando-as em coisas vivas, quase pessoas, parentes. É incisiva quando faz restrições. Mesmo rigorosa, no entanto, a crítica é civil e compreensiva, busca aproximar tanto o leitor como o próprio artista. O ar agora é de família intelectual.

    Os andamentos familiar e intelectual se condensam na figura central de "A Palavra Afiada", o aflito e complicado Mário de Andrade. O pai dela era primo do poeta. A menina-moça e o escritor viveram na mesma casa por 12 anos, desde que ela saiu da fazenda até casar.

    Gilda de Mello e Souza passa longe do método biográfico, o que explica as obras pela vida do artista. É rigorosa com a sua obra e revela traços da sua personalidade —diz que o autor de "Macunaíma" tinha algo de sádico, se comprazia em fazer crianças chorarem e ver velhas brigarem.

    Mas se aproveita da convivência para explicar como a obra do escritor se manifesta. Mais do que isso, o carinho com que o trata transforma-se em forma ímpar de entendimento.

    E talvez até mais ainda: o Mário de Andrade de Gilda de Mello e Souza tem a autonomia e a riqueza de personagem central de algum grande romance. Poucos conseguem fazer isso. Talvez só ela.

    mario sergio conti

    Autor de 'Notícias do Planalto', obra que dissecou as relações entre a Presidência de Fernando Collor e a imprensa, começou sua trajetória como jornalista na Folha em 1977. Escreve quinzenalmente aos sábados.

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