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    Mario Sergio Conti

    O mundo contra o Oscar

    DE SÃO PAULO

    20/02/2015 02h00

    Existe alguma festa mais chata que o Oscar? A que comemorou a eleição da última mesa do Congresso, talvez.

    Afinal, no último regabofe em Los Angeles, Cate Blanchett estava duas polegadas mais esbelta que Renan Calheiros. E a "coiffure" de Eduardo Cunha ficou aquém da de Lupita Nyong'o.

    (Vai aqui, data vênia, um par de críticas construtivas, das quais o Brasil tanto carece: o presidente da Câmara poderia usar um xampu estruturante, de modo a encorpar o volume morto no topete; o do Senado deveria adotar a Dieta Lava-Jato).

    Até a entrega dos Kikitos, para os quais ninguém liga lhufas, exceto os que concorrem no Festival de Gramado, é menos tediosa que a folia de Hollywood.

    Isso para não falar na folia momesca propriamente dita. Ainda mais quando ditadores africanos batem bumbo na bateria e empreiteiros requebram de tapa-sexo.

    Apesar da chatice do Oscar, neste domingo lá estaremos, os basbaques, prestando atenção a vestidos e penteados.

    Os filmes são o que menos interessa na festa. O Oscar não tem nada a ver com qualidade, o estado da arte, a pertinência do cinema americano.

    Tanto faz quem ganha a estatueta (sem falo, mas que segura uma espada). Como é próprio das mercadorias, os filmes do Oscar são intercambiáveis entre si, perdem função assim que assistidos, consumidos.

    Exagero? Então diga rapidinho qual filme foi o grande premiado no Oscar do ano passado. Difícil lembrar, não?

    Pois foi aquele no qual uma jovem negra (Lupita Nyong'o) era despida e açoitada interminavelmente. Com chicotadas num dolby-sensurround de detonar o cérebro, seu corpo vertia pus e sangue em closes abundantes.

    O que ficou do último Oscar foi o sadismo racista e erotizado de "12 Anos de Escravidão", as imagens tão mais nefandas porque podem passar por denúncia.

    Ficou também o narcisismo de um punhado de celebridades que, contentes consigo mesmas, se fotografaram numa selfie –fetiche que a partir de então ganhou o mundo.

    No Oscar deste ano, o sadismo se fará presente na celebração bélica de "Sniper Americano". O filme sequer lembra que a Casa Branca, sem qualquer motivo, invadiu o Iraque e matou mais de um milhão de pessoas.

    Já narcisismo estará em "Birdman", enésimo drama sobre as agruras que uma celebridade podre de rica (o ator Michael Keaton) enfrenta quando quer expressar o seu verdadeiro Eu.

    Se o cinema americano tem pouco a oferecer ao mundo, o mundo tem muito a dizer de si. É o que fazem, cada qual a sua maneira, quatro dos concorrentes ao Oscar de melhor filme estrangeiro.

    "Leviatã", o russo, descreve o Estado pós-stalinista: um instrumento de coerção, e mesmo expropriação, de quem não tem poder. A polícia, a política, a Justiça e a igreja são seus inimigos absolutos. Contra eles, toda luta está perdida de antemão.

    "Timbuktu", da Mauritânia, flagra o extremismo religioso no dia a dia da ocupação de uma região do Mali. Fugindo da satanização à lá "Sniper", mostra que os fanáticos são gente bastante comum, que se confunde com as suas vítimas.

    "Ida", o polonês, vai do presente à Segunda Guerra Mundial para mostrar que o antissemitismo, vivíssimo na Europa de hoje, tem uma história. E que patriotas católicos são parte dela.

    Ainda que 90% de "Leviatã" pudesse se passar aqui, e que o fundamentalismo religioso tenha expressão cada vez maior, "Relatos Selvagens", o concorrente argentino, é o que está mais perto da problemática brasileira.

    Como em Buenos Aires, a burocracia, a ineficiência e a humilhação são nossas velhas conhecidas. Em "Relatos Selvagens", o protagonista de uma das histórias as enfrenta com um ato terrorista que, no entanto, não é político.

    Só então ele obtém simpatia e sucesso, como o próprio filme que protagoniza. É a vingança do mundo contra o Oscar.

    mario sergio conti

    Autor de 'Notícias do Planalto', obra que dissecou as relações entre a Presidência de Fernando Collor e a imprensa, começou sua trajetória como jornalista na Folha em 1977. Escreve quinzenalmente aos sábados.

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