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    Mario Sergio Conti

    Richelieu e o cardeal Kissinger

    17/04/2015 02h01

    "Ordem Mundial", de Henry Kissinger, publicado pela Objetiva, faz jus à chatice inerente à literatura diplomática. O seu lugar é a biblioteca das chancelarias, as estantes onde mofa o palavreado que dá forma florida à força bruta e à crua avidez.

    Para piorar, o nonagenário Nobel da Paz, o ex-secretário de Estado, a figura vetusta da nata americana adota os modos de um sábio ancião. Escreve com bico de pena e punhos de renda. Vê o mundo com o enfado de quem já viveu tudo.

    A gerontocracia, no entanto, é um preconceito como outro qualquer. Como o culto da juventude, por exemplo: ao longo da carreira, Kissinger sublinhou várias vezes que se tornou conselheiro nacional de segurança com menos de 40 anos.

    Ele está longe de ser tido como um sábio nos Estados Unidos. É censurado pela extrema direita por adotar uma realpolitik de linhagem europeia, ser o intelectual sem princípios que se acertou com a China sem dar a mínima por ela ser uma ditadura comunista.

    Para os liberais, o que vale é o seu currículo, escrito com sangue. Combatente gélido da Guerra Fria, mantou matar centenas de milhares de vietnamitas, levou a guerra ao Laos e ao Camboja, patrocinou o golpe de Pinochet no Chile, defendeu o bombardeio de Angola etc. etc. São muitos et ceteras na defesa de interesses materiais do Império.

    A ambiguidade está no próprio Kissinger, cuja obra escrita oscila entre uma coisa e outra. É uma pena. Porque os livros dos formuladores da política externa americana costumam ser mais verdadeiros do que os escritos por políticos.

    Para o público interno, o povo, servem-se demagogia e fantasias. Para a elite dominante (corporações, "think tanks", Wall Street, multinacionais, o complexo industrial-militar), os teóricos apresentam a análise de conflitos, mercados em potencial, chances de exploração.

    Kissinger só é sincero quando dá vazão à vaidade. Em "Ordem Mundial", habilmente se compara ao cardeal de Richelieu, ministro plenipotenciário de Luís 13. Ele sublinha o pragmatismo do dignitário católico que se aliou aos protestantes devido a raisons d'État, conceito que entrou para a história como invenção do cardeal.

    Há aí uma concepção de mundo implícita: como na Europa do século 17, a comunidade de nações de hoje deve funcionar com base em parâmetros práticos. Kissinger nunca diz, porém, que Richelieu esboçou uma forma histórica, o Estado absolutista, que só se firmou à força do massacre de centenas de revoltas (como as da Fronda, por exemplo).

    Richelieu entra no livro como Pilatos no credo: como Kissinger quer pontificar sobre as revoltas islâmicas de hoje, ressuscite-se um prelado. A construção soa forçada porque em "Diplomacia", o magnum opus de Kissinger, a religião não é vista como um elemento da política externa. Nem sequer é citada.

    Internamente, a analogia também enguiça. Kissinger elege Al Qaeda, Boko Haram e Estado Islâmico como os satãs da ordem vigente, o que parece um exagero evidente. Comparados com os inimigos históricos da democracia capitalista, o comunismo e o fascismo, os grupos de fanáticos podem trazer um prejuízo infinitamente menor aos Estados Unidos.

    O que resta de "Ordem Mundial" é a curiosa reabilitação de Richelieu. O cardeal fez muita gente sofrer para que o Estado absolutista vingasse. Quando morreu, o populacho de Paris soltou fogos para comemorar, enquanto os poderosos do dia lhe deram um enterro glorioso.

    O veredito final ainda não ocorreu. Em 1793, durante o Terror, o cardeal foi desenterrado para que o seu cadáver fosse decapitado postumamente. O que restou dos seus restos mortais só voltou a ser enterrado décadas depois, numa discreta cerimônia de Estado.

    Precavido, Kissinger se justifica em vida.

    mario sergio conti

    Autor de 'Notícias do Planalto', obra que dissecou as relações entre a Presidência de Fernando Collor e a imprensa, começou sua trajetória como jornalista na Folha em 1977. Escreve quinzenalmente aos sábados.

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