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    Mario Sergio Conti

    Diante da lei

    19/01/2016 02h00

    Demorou, mas a vetusta grei dos legalistas veio à praça defender os sagrados princípios da lei. Com o semblante grave, gravaram em bronze o básico direito humano à Justiça. Só ficaram faltando uns bestializados, quem atirasse chapéus para o alto aos gritos de "viva a República!".

    A carta dos advogados, que cem deles divulgaram na semana passada, é desses libelos que liberais urdem de quando em quando. No mais das vezes, a verborragia oculta objetivos comezinhos. Dessa vez, eles deram conteúdo universal à advocacia de um pugilo de clientes.

    Rica em retórica e rala em fatos, a carta é um ataque altissonante à Lava Jato. Para os signatários, o juiz Sergio Moro e os procuradores de Curitiba põem em risco liberdades essenciais. O Estado de Direito estaria em perigo, nada menos.

    Espremida, o que a carta prega é o abandono da prisão prévia de investigados, que só assim topam delações premiadas. Existem aí, de fato, questões difíceis e em aberto. Mas como os autores, espertamente, não esmiúçam casos concretos, o seu verbo incandescente se esvai em pestilento vapor.

    Há também a hipocrisia da defesa seletiva de homens de bem –ou melhor, homens de bens, aqueles com posses para remunerar advogados. O Ministério da Justiça revelou há meses que há 600 mil homens e mulheres presos. É a quarta população carcerária do planeta. Dá-lhe, Brasil.

    Cerca de 240 mil deles são detentos provisórios, sem sentenças transitadas em julgado. Esse contingente, cuja maioria acachapante é de pobres e jovens, apodrece em masmorras à altura das da Inquisição. Em prol deles ninguém redige missivas. São bandidos, conforme se diz em escritórios da avenida Paulista.

    Enfim, a carta não colou. A centésima tentativa de reapertar os laços que atam o poder econômico (grande empresariado, empreiteiras à frente) ao poder político (grandes e pequenos partidos) ficou por demais escancarada.

    Ainda assim, a carta põe a nu, inadvertidamente, o mecanismo da lei, tal como evidenciado por Kafka em "Diante da lei". Publicada há 101 anos, a curta parábola conta a história de um homem que busca a lei.

    Ele a encontra. A entrada do lugar onde ela fica é controlada por um porteiro, que lhe diz que ele não pode entrar "naquele momento". O homem decide esperar porque o guardião lhe revela que, depois dele, há outros porteiros, cada um mais poderoso que o anterior.

    Aquele que busca a lei fica ali anos a fio. Ao morrer, faz uma única pergunta: se a lei é acessível a todos, por que só ele a procurou? "Aqui ninguém mais pode entrar, porque essa porta estava destinada exclusivamente a você", responde o guarda. "Agora, vou fechá-la."

    A lei existe, mas é inatingível. Ela depende de quem a guarda e de quem a busca, como bem sabem rábulas que compõem mal traçadas linhas. A lei não pode ser encarada porque está em perpétuo movimento, pois que provém de uma relação na qual entram o peso da tradição e as contingências de dias voláteis.

    Quem dita a lei detém um só poder: o de deferir, no sentido de adiar, procrastinar, não dar nunca um sentido único à própria lei. Quem vê o sol nascer quadrado em Curitiba aprende na carne, no aqui e agora, aquilo que 240 mil outros presos brasileiros e o personagem de Kafka já sabem: diante da lei, é preciso esperar.

    mario sergio conti

    Autor de 'Notícias do Planalto', obra que dissecou as relações entre a Presidência de Fernando Collor e a imprensa, começou sua trajetória como jornalista na Folha em 1977. Escreve quinzenalmente aos sábados.

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