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    Mario Sergio Conti

    Não estamos sós

    26/04/2016 02h00

    A última edição da "London Review of Books" traz um ensaio de mais de vinte páginas sobre a crise no Brasil. De longe, é o melhor apanhado a respeito publicado na imprensa. Seu autor é o historiador anglo-irlandês Perry Anderson.

    Ele conhece o Brasil há mais de meio século, quando se estabeleceu em São Paulo e aprendeu português para estudar a Revolução de 1930. Desde então, vem aqui com regularidade. Na última visita, esteve no Templo de Salomão, no Brás.

    Como o circo máximo da Igreja Universal do Reino de Deus fica a uma cuspida da Assembleia de Deus, com a qual rivaliza em monstruosidade kitsch, escreveu que a rua onde estão "é uma espécie de Wall Street da religião".

    Faz sentido. Além de ter contemplado sessões de exorcismo, Anderson viu pastores ordenhando o rebanho em benefício "dos impérios financeiros de seus fundadores". É por isso que Edir Macedo orou por FHC, depois por Lula, depois por Dilma –e hoje quer queimar a bruxa. Nosso Moisés está de olho no maná das concessões de TV e das isenções fiscais.

    Os evangélicos, que já são mais de um quinto da população, não estão sós. Eles têm a seu lado os querubins do Facebook. O historiador nota que o arcanjo Zuckerberg tem no Brasil o maior número de adeptos no mundo, depois dos Estados Unidos. E foi na nebulosa virtual que vicejaram Revoltados On-Line, Vem pra Rua e assemelhados da extrema-direita.

    No coração desse mundo espiritual-digital encontra-se "o mestre da magia negra da manipulação parlamentar": o pastor Eduardo Cunha. Com a bênção do Supremo, o príncipe das trevas internéticas tem uma empresa chamada jesus.com, quatro contas secretas na Suíça, uma nos EUA, outra em Cingapura e uma sétima na Nova Zelândia.

    É com pinceladas de Daumier que Perry Anderson pinta a missa negra de tucanos, petistas e extrema-direita para maior glória de Eduardo Cunha. Uns, para barrar a destituição de Dilma. Outros, em busca do contrário. Pensando exclusivamente em exterminar a corrupção da Pátria do Evangelho, Cunha optou por oficiar o impeachment.

    O papa da Câmara não está só. Anderson descreve com denodo as bruxarias de Fernando Henrique e Sergio Moro. Ao contrário da esquerda brasileira, que cultiva a crença primitiva de que basta xingar os adversários para que evaporem, Anderson é substancioso.

    Ele observa que o ex-presidente fala muito em reforma política, mas, no poder, a única reforma que fez foi para obter o segundo mandato. Que não só abandonou as convicções socialistas da juventude como qualquer veleidade intelectual. E que, ao sair do Planalto, sua popularidade era equivalente à de Dilma hoje (tanto ela como Lula, aliás, se saem pessimamente no ensaio).

    O historiador leu o artigo de Sergio Moro sobre a operação Mãos Limpas. Informa que o juiz usou fontes ralas e de segunda mão. Por isso, levou a sério a delação premiada de um mafioso, sem saber que o depoimento foi jogado no lixo na instância superior. Para Anderson, era patente o desprezo de Moro pelas regras básicas do direito, bem como seu afã em atropelá-las.

    Não estamos sós. Anderson começa o ensaio constatando que os Brics –China, Índia, África do Sul e Brasil– enfrentam enormes dificuldades, mas que a crise é maior aqui. E o encerra dizendo que o ciclo latino-americano de crescimento está por um fio. Um mundo novo vem aí. Ninguém sabe como será ele. Mas não parece divino.

    mario sergio conti

    Autor de 'Notícias do Planalto', obra que dissecou as relações entre a Presidência de Fernando Collor e a imprensa, começou sua trajetória como jornalista na Folha em 1977. Escreve quinzenalmente aos sábados.

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