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    Mario Sergio Conti

    Uma flor nasceu no Maracanã: 'furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio'

    09/08/2016 02h00 - Atualizado às 13h39

    Como nenhum país é tranquilamente resumível, a feérica abertura da Olimpíada extravasou em direções várias. Com isso, ela se prestou a análises selvagens. A mais espirituosa surgiu no jornal britânico "Independent", que enxergou uma xoxota imensa no centro do Maracanã.

    Viu-se ali o que se quis. Do hino de fé na nacionalidade à integração do Brasil ao circuito de megaeventos da mundialização. Da vitória do comércio entre capital e política, artífice de tantos estádios baldios, à sua derrocada, entrevista nas vaias ao funesto interino. De tudo ficou um pouco. Às vezes um botão. Às vezes um rato. Da rosa ficou um pouco.

    O que restou da rosa reverberou na voz de Fernanda Montenegro. Ela leu versos de "A Flor e a Náusea", o terceiro dos 55 poemas de "A Rosa do Povo", lançado há 70 anos. É a poesia na qual Drummond diz que "o tempo é ainda de fezes, maus poemas, alucinações e espera".

    "A Rosa do Povo" é poesia engajada. O livro nasceu da confluência entre a épica distante (o combate soviético ao nazifacismo na Europa) e a opressão próxima (da tirania varguista). Mas a efusão lírica não ecoa apenas a história heroica num solo atroz.

    Ela registra também a rebeldia do homem reticente contra a sua intimidade; o féretro do subjetivo em prol da ressurreição coletiva; a cólera de um intelectual contra a sua classe; a dialética entre não ser e ser outro; a lírica que abandona o ouro do inefável para germinar no barro do coloquial. Aí a rosa desabrocha: "É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio".

    Foi uma sabedoria ter chamado Fernanda Montenegro para declamar o "A Flor e a Náusea" –outros nomes cabíveis seriam Antonio Candido e João Gilberto, também eles drummondianos entrados nos anos. Criatura da Segunda Grande Guerra, a atriz viu várias vezes o trator destroçar a rosa desde então. Talvez por isso tenha dito o poema com firmeza inenfática.

    No contexto do show olímpico, a rosa do povo adquiriu configuração ambientalista. Abandonou-se a dicção antiburguesa do Drummond de então ("O poeta/ declina de toda responsabilidade/ na marcha do mundo capitalista... Promete ajudar a destruí-lo/ como uma pedreira, uma floresta,/ um verme"), em favor de um ecologismo boa praça, que agrada a todos.

    A operação, de raiz ideológica, não é absurda porque "A Flor e a Náusea" permite a aproximação ao ambientalismo. Inúmeras vezes o poema contrapõe a natureza ("montanhas, nuvens maciças", "pétalas que não se abrem") ao urbano ("mercadorias", "muros", "rio de aço do trafego"). E o que importa é que a rosa do povo nasceu de novo.

    Foi o segundo renascimento seguido. Há poucos meses, a revista "Novos Estudos" publicou o ensaio "Um mundo em chamas e o país inconcluso". Contra a crítica literária retradicionalizante, que elegeu o neoclassicismo de "Claro Enigma" como o ápice de Drummond, Iumna Maria Simon resgata "A Rosa do Povo".

    Com uma análise criativa mas colada aos versos, informada pela esperança radical, Iumna põe o livro comunista de 1945 no coração de nossa poesia. Ela encerra o ensaio falando do povo da rosa:

    "A galeria de pobres, loucos, trabalhadores, suicidas, párias, mulheres abandonadas, funcionários, soldados russos, gente de pé no chão, cantores tupis, violeiros que povoam o horizonte de inconformismo e revolta de seu tempo". Um tempo que, hélas, é ainda o nosso.

    mario sergio conti

    Autor de 'Notícias do Planalto', obra que dissecou as relações entre a Presidência de Fernando Collor e a imprensa, começou sua trajetória como jornalista na Folha em 1977. Escreve quinzenalmente aos sábados.

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