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    Mario Sergio Conti

    Depois de Jânio, militares e Collor, pode sugir novo Salvador da Pátria

    25/10/2016 02h00

    "Imagens para o fim de tudo isso
    Imagine se isso
    um dia isso
    um belo dia
    imagine
    se um dia
    um belo dia isso
    cessasse
    imagine"

    O poeminha de Samuel Beckett é imperativo: imagine o fim de tudo isso. Mas como não se diz o que é "isso", nem porque deve cessar, a imaginação emudece. Decorre daí que Beckett seja tido como o cantor do sem sentido. Da existência absurda. Da morte e do nada.

    Feita em meados dos anos 70, a sua canção parte contudo de uma condição concreta – o presente de um irlandês que foi para Paris, engajou-se na Resistência, deu-se com Joyce e Adorno, escreveu "Esperando Godot", viu os incêndios de 68. A imaginação é pessoal e histórica.

    Imagine que num belo dia isso cesse. Isso: a crise que começou em 2013. Foi quando se constatou que a nação não condizia com o padrão-Fifa, propalado pela iniciativa privada e pela política, da situação à oposição. Todos queriam estádios. E/ou uma negociata, mas servia um negocinho. Houve choro e ranger de dentes.

    Abriu-se uma ferida. Que a eleição da presidente não curou. Por obra e graça de Dilma, que traiu o que prometera, e de Aécio, que partiu para cima dela na esperança que o governo sobrasse para ele. O PT e o PSDB, Lula e Fernando Henrique, aderiram a essa dinâmica infame, o que lhes diminuiu o lugar na história e no presente.

    A lesão gangrenou e o ódio se espalhou pelo corpo social. Se antes era tatuagem pitoresca ("rouba, mas faz"), a corrupção passou a ser vista como a raiz de todo o mal.

    Percebeu-se que o poder não emana do povo nem em seu nome é exercido, como diz a Constituição. O poder foi pego e é pago pelos donos do dinheiro. Pergunte às empreiteiras, aos parlamentares, ao Planalto.

    Quem tem dinheiro passou a dizer que o país pifou. O remédio prescrito é drástico: quem ferido está, mais ferrado ficará. Para que os ricos e seus representantes sigam no bem bom, porém, será preciso rearrumar o sistema de mando. Se a tradição vingar, virá outra vez a Conciliação.

    Ela poderá ser feita botando um band-aid na Lava Jato, outro no deficit fiscal, e vamos em frente. O Brasil chegará a 2018 em carne viva. Depois do tacão militar, da Nova República, do pesadelo collorido, do apagão tucano, da deterioração petista e do golpe democrático – após o fracasso total virá o Salvador da Pátria.

    Não será fácil chegar a novas eleições. A recessão não dá sinal de arrefecer. O assédio à lei prossegue. Até porque se desconfia que quem diz zelar pelo seu cumprimento quer, na verdade, proteger poderosos.

    Por isso, Bonaparte poderá vir até mesmo antes do próximo pleito, caso um desses cruzados contra a corrupção se meta na política. Como tantas almas crédulas seguiram Jânio, os milicos e Collor, dá para imaginar o tamanho da procissão atrás de um histrião moralista. De modo que é melhor criar outras imagens, ainda que mentais e poéticas.

    "Imagine
    se um dia
    um belo dia isso"

    mario sergio conti

    Autor de 'Notícias do Planalto', obra que dissecou as relações entre a Presidência de Fernando Collor e a imprensa, começou sua trajetória como jornalista na Folha em 1977. Escreve quinzenalmente aos sábados.

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