• Colunistas

    Sunday, 28-Apr-2024 18:35:04 -03
    Mario Sergio Conti

    Lume do tempo que apagou

    06/12/2016 02h00

    Murilo Meirelles /Folhapress
    Retrato de Ferreira Gullar para a capa da revista "Serafina", de 29 de agosto de 2010
    Retrato de Ferreira Gullar para a capa da revista "Serafina", de agosto de 2010

    A pretexto de chorar a perda de uma pessoa querida, choramos por nós mesmos; lamentamos o fim da boa opinião que ela tinha de nós, choramos a diminuição de nosso bem, de nosso prazer, de nossa consideração. Assim, os mortos têm a honra das lágrimas que são vertidas pelos vivos: enganamos a nós mesmos.

    A máxima acima, de La Rochefoucauld, dissolve a neblina piegas que nos envelopa quando morre uma pessoa que nos fez o bem, da qual dependemos num tempo já passado. Alguém que amamos um dia. É o caso de Gotlib, o autor de histórias em quadrinhos falecido no domingo (4).

    Artista maior de uma arte menor, ele era inapelavelmente nacional. Malograram, por exemplo, todas as tentativas de divulgá-lo no Brasil. Não que fosse complexo: tinha traço grosso e graça rude. Ocorre que a sua força eram as paródias, cujas vítimas estavam alhures, na indústria cultural francesa.

    Gotlib não ilumina um período porque não se pode pedir isso de quadrinhos. Mas a sua fantasia e escárnio serviam de ácido para dissolver em ridículo a arte automatizada, na pomposa variante gaulesa. Como ele diria, o seu desenho era de ralar de rir: trabalho negativo, humor.

    Já a pieguice serve bem de mortalha para outro desaparecido no domingo. Tivesse morrido há 40 anos, Ferreira Gullar teria virado mito. Arderiam como nunca as luzes recorrentes de seus versos: faísca, raio, labareda, lampejo. Sua poesia era relâmpago que clareia e queima.

    "Poema sujo", de 1975, foi um incêndio. Com audácia formal, ele sintetizou engajamento político (comunista); aventura existencial (modorra em Moscou e golpe no Chile); solidão afetiva (o exílio o afastou de amantes) e remorso familiar (abandonou filhos pequenos, que se drogaram e adoeceram).

    Esse artista inquieto e rebelde cedeu lugar ao Gullar dos últimos anos: cronista rançoso, esteta hostil ao novo, intelectual raso e ranheta, político embalsamado em conformismo, a exalar mofo acadêmico. Há décadas ele não fazia um poema que prestasse, e pontificava em prosa chocha.

    Em "Rabo de Foguete", as suas lembranças do exílio, de 1998, ele empilhou num único parágrafo "coração aos pulos", "bêbado de felicidade", "vertigem que tirava o fôlego" e "adormeci sorrindo". Na memorialística do século 20, só o Jorge Amado de "Navegação de Cabotagem" o supera em chavões.

    A poesia febril de Gullar diz respeito a um tempo que ficou para trás. A sua voz tem dificuldade em alcançar os leitores de hoje.

    Será assim para sempre? No que dependesse dele, talvez sim. Foi o que concluiu no desenlace de um dos seus grandes poemas, "Praia do Caju", que no entanto serve de testemunho e luz:

    A distância é vasta
    tão vasta que nenhuma voz alcança.
    O que passou passou.
    Jamais acenderás de novo
    o lume
    do tempo que apagou.

    *

    Houve mais mortes nos últimos dias, mas de desconhecidos: as dos jogadores da Chapecoense, que tanto pranto ensejaram. Foram lágrimas a respeito das quais La Rochefoucauld também escreveu: Lágrimas que correm e secam facilmente: chora-se para ter a reputação de ser meigo, chora-se para ser lastimado, chora-se para ser chorado; chora-se enfim para evitar a vergonha de não chorar.

    mario sergio conti

    Autor de 'Notícias do Planalto', obra que dissecou as relações entre a Presidência de Fernando Collor e a imprensa, começou sua trajetória como jornalista na Folha em 1977. Escreve quinzenalmente aos sábados.

    Edição impressa

    Fale com a Redação - leitor@grupofolha.com.br

    Problemas no aplicativo? - novasplataformas@grupofolha.com.br

    Publicidade

    Folha de S.Paulo 2024