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    Mario Sergio Conti

    Ressentimento no Brasil atinge cumes constrangedores

    07/02/2017 02h00

    Danilo Verpa/Folhapress
    SAO PAULO - SP - 04.02.2017 - Velorio de dona Marisa, mulher do ex-presidente Lula, realizado no sindicato dos Metalúrgicos em Sao Bernardo do Campo. (Foto: Danilo Verpa/Folhapress, PODER) ORG XMIT: VELORIO MARISA
    Lula discursa no velório de Marisa Letícia, no último sábado (4), em São Bernardo do Campo

    Países de classe média grande são relaxantes, diz uma personagem de "Toni Erdmann", comédia que estreia na quinta-feira (9). Concorrente ao Oscar de filme estrangeiro, ela vai do Primeiro Mundo (Alemanha) ao finado Segundo (Romênia) para mostrar algo da classe média europeia.

    Um pai e uma filha encarnam a pequena burguesia. Professor de música para crianças, o patriarca pouco trabalha. Usufrui do Estado de Bem-Estar social do pós-guerra e dos costumes libertários de 1968. No início do filme, ele se fantasia de zumbi; é um morto-vivo.

    Já a filha é uma executiva do capitalismo turbinado duas décadas depois, a partir do fim da Guerra Fria. Hipercompetitiva no seu blazer preto, ela demite em Berlim, Bucareste ou Cingapura. Tanto faz onde porque o Primeiro, o Segundo e o Terceiro Mundos são trincheiras da globalização, na qual ela é um uber-drone.

    A moça é um produto torto de 68. Pôde entrar no mercado de trabalho porque há meio século começou uma vaga feminista, que no entanto ela despreza. Para empregar o seu jargão: está focada na carreira e performa. Usa drogas, sexo e afeições quando a ajudam no trabalho.

    A filha acha o pai arcaico e irresponsável. Ele a considera cruel consigo mesma e com os outros. Na penúltima cena, a jovem está nua e o velho é um monstro peludo. Na última, a reconciliação é ambígua.

    Como aqui a classe média é minoritária e os pobres preponderam, o Brasil não é relaxante. O país está ainda mais tenso porque é difícil encontrar trabalho, e a pequena burguesia acha que o PT roubou os seus empregos. A ira impera.

    O ressentimento atinge cumes constrangedores. Uma trabalhadora que nunca fez mal a ninguém, Marisa Letícia, agonizava, e um panelaço irrompeu em torno do hospital. Médicos, blogueiros e publicitários insuflaram agressões bestiais. O afeto que se encerra no peito nacional se fez ouvir.

    A cerimônia que os eleitos pela classe média (e não só por ela) protagonizaram dentro do hospital, porém, não foi uma mera trégua. Foi uma conciliação apoteótica, e tão mais grave porque feita à beira de um leito de morte.

    Cleptocratas de todos os partidos, o Planalto e o Congresso em peso, o atual presidente –e dois ex– foram todos muito além do protocolar. Propalaram em alto e bom som seu apreço e afeto pelo adversário da véspera, Lula.

    Uma explicação para tal congraçamento se encontra no "homem cordial" de Sérgio Buarque: no Brasil, a nata dominante faz com que sentimentos se sobreponham à fria letra da lei, de modo a beneficiar materialmente o seu clã, a sua casta e a sua classe.

    Lula foi além da cordialidade na oração fúnebre que fez diante dos despojos da mulher. Disse quem são, de fato, seus inimigos: "os facínoras que levantaram leviandades contra Marisa". Ou seja, Sergio Moro e os procuradores da Lava Jato.

    Ao divulgar a gravação de um telefonema entre Marisa e um filho, que não falaram nada de relevante, mas na qual ela disse um palavrão, o juiz cometeu uma baixeza. Ao processá-la, para atingir Lula, golpeou abaixo da linha da cintura.

    Como não querem magoar a classe média, os cleptocratas se calaram. Na morte de Marisa, contudo, ficou evidente que preferem Lula a Moro. Não querem ser presos e receiam a humilhação de suas famílias.

    Para Lula, para o que sobrar do PT, para a esquerda toda, resta o mais difícil: reconquistar a confiança dos trabalhadores e da clas- se média.

    mario sergio conti

    Autor de 'Notícias do Planalto', obra que dissecou as relações entre a Presidência de Fernando Collor e a imprensa, começou sua trajetória como jornalista na Folha em 1977. Escreve quinzenalmente aos sábados.

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