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    Mario Sergio Conti

    Bach diria que a cracolândia é uma ilha no mar da civilização?

    26/08/2017 02h00

    Bruna Barros/Editoria de Arte/Folhapress

    Quarta-feira, 2 de agosto: depois de um debate sobre racismo, e de jantar no Sujinho, o escritor Paul Beatty quis ir ao recanto que, para gáudio geral, chamou de "crackland". O pouco que temos a oferecer aos turistas está concentrado: cruza-se a cracolândia para entrar na Sala São Paulo.

    O jardim das delícias paulistano lembrou a Paul Beatty a Los Angeles dos anos 1980. Foi quando o crack estourou nas quebradas negro-latinas e do white trash. Agora, a onda lá são os opiáceos. Somos atrasados até no vício.

    Terça, 8 de agosto: "O Cravo Bem Temperado", daqui a duas semanas, será o concerto do ano da Sala São Paulo. O pianista András Schiff é hoje o grande intérprete de Bach. Dizem que toca o "Cravo" de memória e sem pedal de apoio. O ingresso custou 200 paus. E era meia.

    Sábado, 19: no dia do patrimônio histórico, é permitido aos bugres visitar o palacete do barão Carlos Leôncio de Magalhães, em Higienópolis. Embora o cafeicultor tivesse o brejeiro apelido de Nhonhô, seu casarão não inspira leveza, e muito menos leviandade.

    Ele mescla o que há de funesto em adereços arquitetônicos, de capitéis jônicos a entalhes de jacarandá. A feiura converge para uma capelinha manuelina onde se celebrava a suruba de commodities e contrarreforma. É um monumento pio à incultura do café, um mausoléu da civilização estéril.

    Domingo, 20: aniversário de Roberto Schwarz, cujo "As Ideias Fora do Lugar" saíram há 40 anos. O ensaio situa a estética periférica na circulação mundial de mercadorias. O atraso da ex-colônia só é superado em arte, com Machado. Na sociedade, não: o relho de Nhonhô ainda nos lanha o lombo.

    "As Ideias Fora do Lugar" sobreviverá à atual regressão? Haverá no mês que vem um seminário na USP a respeito do ensaio, o que é sinal da sua pertinência. Mesmo na pizza de aniversário, porém, gênero e cor permeiam os papos, tomam o lugar da dialética, das classes e da arte.

    Segunda, 21: "Lady Macbeth" adapta um romance meio machadiano do século 19 que, por sua vez, recria na Rússia periférica a personagem maior de Shakespeare. No original, a luta pelo poder move a trama. No filme, a feminilidade de Madame e a cor do seu amante perenizam a ação.

    Terça, 22: "O Cravo Bem Temperado" valeu cada real. Schiff de fato tocou de cor, e com o pé direito pregado no chão, durante duas horas. Os 24 prelúdios e 24 fugas iluminaram o presente com seu mistério.

    Mistério que começa pelo título: "Cravo" deveria ser traduzido por "Teclado" –do clavicórdio, do órgão e do cravo. Mas não do piano, o instrumento em que é tocado. "Temperado" refere-se à afinação, a uma querela matemática que remonta a Platão.

    Bach foi tido por piegas e rato de sacristia. Mas Glenn Gould disse que ele já era arcaico há 300 anos. Para Adorno, sua música encarnou a dissonância, em trânsito do sagrado para o profano, da igreja medieval para o teatro burguês.

    Madrugada de quarta, 23: Bach diria que a cracolândia é uma ilha no mar da civilização? Que a Sala São Paulo é uma fortaleza sitiada? Quem seriam para ele os insensatos –a plateia perfumada ou os noias andrajosos?

    As Ideias Fora do Lugar
    Roberto Schwarz
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    Dentro da sala, a plateia lavara o cabelo com xampu e se untara com cremes. Entendia a matemática da música e se enternecia quando Schiff prolongava uma nota. Éramos herdeiros de Nhonhô, disfarçando a opressão com adereços barrocos.

    Lá fora, the crackland era um acampamento de refugiados à lá Bosch: grávidas acocoradas na frente de fogueiras, adolescentes mirrados enrolados em parangolés, pichações no corpo, tatuagens na alma, a harmonia infernal da fuga.

    Anteontem, 24: Não havia no centro de São Paulo nem gêneros nem raças; nem classes conscientes nem minorias rebeldes. Era uma madrugada normal, uma caralhada de doidos de pedra na fissura do crack bem temperado.

    mario sergio conti

    Autor de 'Notícias do Planalto', obra que dissecou as relações entre a Presidência de Fernando Collor e a imprensa, começou sua trajetória como jornalista na Folha em 1977. Escreve quinzenalmente aos sábados.

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