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    Marta Suplicy

    Nora e Claire

    11/03/2016 02h00

    Assisti à peça "Casa de Bonecas", de Ibsen (1879), e a alguns capítulos da nova temporada do comentado seriado "House of Cards" (contemporâneo). Minha neta faz o papel de filha da protagonista de "Casa de Bonecas", Nora, o que me levou a rever essa peça que me impressionou há 20 anos. Não tinha ideia do turbilhão que desencadearia, hoje, dentro de mim.

    Nora é uma jovem da burguesia do século 19, tratada e se portando como um bibelô de seu marido: encantadora, dissimulada e correspondendo, à plenitude, ao que se esperava de sua condição feminina, um ser desempoderado.

    Numa discussão sobre dramática situação criada por ela, para beneficiar o marido, Nora se dá conta de que não é ouvida e nem respeitada por ele. Nunca foi. É como um insight que já presenciei com pacientes, quando exercia a profissão, ou com amigas. E com os quais luto e enfrento todos os dias desde pequena.

    A percepção que as Noras ainda estão por aí a "bater as pestanas" me remeteu à Claire, a linda e competente mulher do presidente americano da série "House of Cards", Frank Underwood, político sem escrúpulos e corrupto, sem limites no que fazer para chegar e se manter no poder. O jovem Underwood, de origem simples, já na política, casa com Claire, uma rica herdeira texana. Os pais são contra, mas ela vê nele um jovem promissor. Estranho.

    Por que ela precisa dele? Por que ela embarca de linha auxiliar em pleno século 21? Claire é a escada dele na vida política até começar a lutar por um espaço mais amplo do que o de primeira-dama. O triste é que ela se apropria dos defeitos dele ou aprimora os que já tinha e passa a se mostrar tão mau caráter e ardilosa quanto ele.

    Mais de um século depois, as armas femininas do seriado mais prestigiado da Netflix são os instrumentos desenvolvidos por poderosos. É da essência da política? Tem a ver com oportunidades que um só gênero usufruiu? Sobram indagações, principalmente porque vemos Hillary concorrendo à Presidência dos EUA. Aqui, temos Dilma. O jogo no universo masculino de poder é duro.

    Seremos capazes de criar outra cultura de poder? Temos muitos indicativos que sim, quando se estuda a forma diferente que mulheres desenvolvem seu trabalho com o coletivo. Legado de nossas ancestrais, cuidar de idosos, de crianças e de doentes, da família, deixou marcas importantes na visão da mulher sobre o mundo. Não percamos nossa herança, pois por ela pagamos o preço da exclusão do poder.

    Esta geração já intui um novo panorama e na internet deflagra processos: #chegadefiufiu, #askhermore, #asnegareal, #vamosfazerumescândalo, #primeiroassedio...

    Podem surgir novas formas de exercer o poder. Está nas mãos de todos construí-las.

    marta suplicy

    Escreveu até julho de 2016

    É senadora e ex-prefeita de São Paulo. Foi ministra dos governos Luiz Inácio Lula da Silva (Turismo) e Dilma Rousseff (Cultura).

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