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    Martin Wolf

    Uma sociedade mais igual não prejudicará o crescimento

    23/04/2014 10h48

    A desigualdade é um assunto quente, no momento. A reação ao livro "Capital in the Twenty-First Century", de Thomas Piketty, mostra a maré crescente da ansiedade. Mas Piketty não dedicou praticamente atenção alguma aos motivos para que a desigualdade importe, ou a considerar a possibilidade de que o custo de reduzi-la seja superior aos potenciais benefícios. É uma lacuna que precisa ser preenchida.

    Boa parte da discussão sobre o livro tomou por foco os aspectos políticos da desigualdade. Mas os aspectos econômicos também merecem atenção. Para minha surpresa, a equipe do FMI (Fundo Monetário Internacional), a mais acomodada das instituições, tratou dessas questões em fevereiro em uma nota de pesquisa intitulada "Redistribuição, Desigualdade e Crescimento". E chegou a conclusões claras: as sociedades que começam de uma base mais desigual tendem a redistribuir mais; quanto menor a desigualdade líquida (pós-intervenções), mais rápido e durável é o crescimento; e a redistribuição tem impacto em geral benigno sobre o crescimento, com efeitos negativos apenas quando conduzida a extremos.

    São conclusões dignas de atenção. Será que são verdadeiras?

    A explicação óbvia para a primeira conclusão seria a de que, pelo menos nas democracias dotadas de sufrágio universal, quanto maior a desigualdade gerada pelo mercado, maior a pressão política pela redistribuição, já que a distribuição do voto é mais igual que a do dinheiro. As pessoas que têm dinheiro podem responder tentando restringir os direitos políticos dos pobres, quer direta, quer indiretamente. Ou podem também buscar atrair o apoio das pessoas que estão abaixo delas na escala de renda por meio de ênfase em questões sociais e culturais. Além disso, os ricos sempre exercem influência política. Que a redistribuição no geral vença não é um resultado espantoso, mas ainda assim é merecedor de atenção.

    Agora considere a segunda conclusão. A desigualdade pode de fato promover o crescimento porque reflete os altos incentivos à inovação e ao espírito empreendedor. Também pode significar poupança maior e com ela maior investimento, já que as pessoas mais ricas podem bem poupar fração maior de sua renda do que as mais pobres. O economista John Maynard Keynes, por exemplo, recorreu exatamente a esse argumento em defesa da desigualdade da era vitoriana. Nos países pobres, a desigualdade pode conferir a parte da população os recursos necessários ao estudo ou a criar um negócio. Mas, do outro lado do argumento, a desigualdade pode privar os pobres da capacidade de se manterem sadios, adquirirem capacitação profissional ou cuidarem bem dos, e educarem bem os, seus filhos. Ela pode gerar instabilidade, porque a política tende a se polarizar entre um conservadorismo que luta por impostos baixos e um populismo redistributivo. E a situação pode também bloquear a formação de um consenso sobre como responder a choques adversos.

    Quanto à terceira conclusão, é fácil perceber por que políticas redistributivas podem prejudicar o crescimento. O custo econômico dos impostos sobe desproporcionalmente quando eles atingem um nível elevado demais. Ao mesmo tempo, algumas políticas redistributivas podem impor custos muito modestos, ou até mesmo negativos: a eliminação de lacunas tributárias arbitrárias que favoreçam os ricos é um exemplo; o uso da arrecadação tributária para financiar investimentos públicos, uma educação melhor ou serviços universais de saúde é outro. Medidas como essas podem promover mais igualdade e maior crescimento ao mesmo tempo.

    Em teoria, portanto, as conexões entre desigualdade, redistribuição e crescimento podem avançar em direções diferentes. As respostas precisam ser encontradas por meio de uma análise cuidadosa dos indícios, por mais imperfeitos que estes possam se provar. Os resultados do estudo do FMI são notavelmente claros.

    Ao longo dos últimos 50 anos, o estudo do FMI ressalta, a desigualdade de mercado (ou seja, pré-intervenção) vem crescendo nos países de alta renda e caindo nos países em desenvolvimento. Isso acompanha o que se pode esperar em uma era de globalização. Além disso, como seria igualmente de esperar, a diferença entre a desigualdade de mercado pré- e pós-intervenção é menor nas economias de alta renda do que em outros países, porque seus Estados são muito mais redistributivos.

    A análise depende de dados transnacionais sobre crescimento, igualdade e redistribuição. Contempla o impacto tanto da desigualdade quanto da redistribuição sobre o crescimento nas rendas per capita reais em prazo de cinco anos, e também a duração dos surtos de crescimento. Quanto aos períodos de crescimento de cinco anos, a constatação clara é que a desigualdade reduz o crescimento. O impacto direto da redistribuição é ligeiramente negativo. Mas o efeito indireto, via redução da desigualdade, beneficia o crescimento. Uma vez mais, a desigualdade maior reduz a probabilidade de que um surto de crescimento perdure. Por fim, o estudo constata que elevar níveis já avançados de redistribuição prejudica o crescimento. Mas abaixo desse ponto extremo em termos de política, redistribuição adicional não prejudica o crescimento.

    A implicação dessa pesquisa pode surpreender. Não só a desigualdade prejudica o crescimento como os esforços para remediá-la são, em geral, inofensivos. Estamos falando de relações estatísticas derivadas de dados que cobrem grande número de países heterogêneos. Mesmo assim, as constatações sugerem que a influência mútua entre redistribuição e crescimento não deve ser causa de preocupação.

    As constatações também são compatíveis com observações casuais. Os europeus estão cientes de que as economias dos países escandinavos, fortemente redistributivos, se saíram melhor que as de países menos redistributivos no sul do continente. Além disso, esses países de tributação pesada tampouco estão sofrendo crises fiscais. Uma vez mais, todo mundo que conhece um pouco sobre desenvolvimento sabe que os países mais igualitários do leste asiático - especialmente Japão e Coreia do Sul - superaram por larga vantagem os países menos igualitários da América Latina, no período posterior à Segunda Guerra Mundial. Os asiáticos investiram com mais sucesso na educação e, dessa e de outras maneiras, inseriram suas populações em economias modernas e dinâmicas.

    Essa análise não representa, é claro, o fim do debate sobre esses grandes tópicos. Mas serve para abri-lo, e em uma direção bastante otimista.

    Não é só possível, mas valioso, casar economias de mercado abertas e dinâmicas a um senso de propósito e realizações compartilhados criado por graus toleráveis de desigualdade. Além disso, menos desigualdade tenderá a fazer com que as economias funcionem melhor, ao elevar a capacidade de toda a população para participar, em termos mais iguais. Uma condição importante para isso, por sua vez, é que a política não sofra influência demasiada da riqueza.

    Como administrar uma combinação como essa entre dinamismo de mercado e redistribuição efetiva é um dos desafios políticos que definem nossa era. Será necessário um firme senso de propósito por parte dos países, e maior cooperação entre eles, especialmente no que tange à tributação. Mas é certo dizer que, se a equipe do FMI está analisando um tema que durante tanto tempo foi tabu, sua hora certamente parece ter chegado.

    Tradução de PAULO MIGLIACCI

    martin wolf

    É comentarista chefe de Economia no jornal britânico 'Financial Times'. Participa do Fórum de Davos desde 1999 e do Conselho Internacional de Mídia desde 2006.
    Escreve às quartas.

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