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    Martin Wolf

    O mau conselho do Jeremias da Basileia

    02/07/2014 16h08

    Eu admiro o Banco de Compensações Internacionais (BIS). É preciso coragem para acusar seus proprietários –os maiores bancos centrais do planeta– de incompetência. Mas é isso que a instituição fez, mais recentemente em seu último balanço anual.

    Seria fácil descartar o pronunciamento como ameaça vazia por um profeta do caos. Isso seria um erro, porém. Quer concordemos ou não com sua visão pré-1930 sobre a política macroeconômica, o BIS coloca questões importantes em debate. E o fato de que o banco seja do contra só torna o debate mais valioso.

    Pode-se dividir a análise do BIS em três partes: o que causou a crise; onde estamos agora, em nosso caminho para escapar a ela; e o que devemos fazer.

    Quanto à primeira, a perspectiva adotada é a do "ciclo financeiro". Essa análise remonta ao trabalho do grande economista sueco Knut Wicksell, na virada do século 20.

    A ideia central é a de que, se a taxa de juros é baixa demais, um boom propelido pela expansão de crédito e alta nos preços dos ativos pode resultar.

    Uma das implicações cruciais (e corretas) é de que o crédito e o dinheiro são endógenos; são criados pela economia. Quando o ciclo financeiro transforma a expansão em contração, crises irrompem.

    A seguir vem as "recessões de balanço" descritas por Richard Koo, do Instituto de Pesquisa Nomura –um doloroso processo de redução do endividamento e períodos prolongados de crescimento anêmico. Esses ciclos, argumenta o BIS, "tendem a se desenrolar em prazos médios de 15 a 20 anos".

    E é justo recordar que o BIS estava lançando alertas nesse sentido muito antes que a crise atingisse os países de alta renda a partir de 2007.

    Quanto à segunda parte, o BIS aponta que o crescimento se recuperou no ano passado, com as economias avançadas ganhando ímpeto e as economias emergentes o perdendo. Mesmo assim, a recuperação foi lenta e fraca nos países atingidos pela crise.

    Embora o crescimento mundial não esteja distante do ritmo atingido na década de 2000, persiste a insuficiência em termos de recuperação do Produto Interno Bruto (PIB).

    Enquanto isso, o endividamento geral continua a crescer. O banco nos lembra de que crises deitam sombras longas.

    Além disso, as políticas adotadas pelos bancos centrais estão exercendo influência extraordinária sobre os mercados financeiros, gerando uma "busca por rendimento", um desaparecimento da incorporação do risco aos preços e um colapso na volatilidade de mercado.

    Isso é verdade ainda que os balanços continuem tão distendidos. Enquanto isso, emergiram excessos de crédito em diversas economias emergentes.

    O BIS está especialmente preocupado com as novas fontes de volatilidade nestes últimos, o que inclui captação internacional por parte de companhias não financeiras.

    Em termos gerais, conclui o BIS com mordacidade, "é difícil evitar uma sensação de intrigante desconexão entre a vitalidade dos mercados e os desdobramentos econômicos subjacentes".

    É quanto ao terceiro ponto –o que fazer– que o BIS se transforma em profeta do Velho Testamento: exige austeridade já. Nos países que experimentaram crises financeiras, sugere reparo dos balanços e reforma estrutural– desregulamentação, mais flexibilidade no mercado de trabalho e "uma redução no inchaço do setor público".

    Também exige reposicionamento fiscal. Mas ao contrário, por exemplo, de George Osborne, o chanceler do Erário [ministro das Finanças] britânico, o BIS quer a retirada do estímulo monetário, também, enfatizando os riscos de "sair tarde demais e de maneira gradual demais".

    O banco desconsidera os riscos e custos da deflação, apesar da imensa sobrecarga de dívidas que ele também enfatiza. Mesmo Jens Weidmann, o presidente do Bundesbank [banco central da Alemanha], não segue por esse caminho.

    E adotar linha mais dura que a do Bundesbank é uma façanha. Enquanto isso, nos países que experimentaram booms financeiros (o balanço anual menciona Brasil, China e Turquia), a recomendação é de um aperto monetário preventivo e imposição de restrições macroprudenciais.

    Para mim, isso é mistura de sabedoria, tolice e de propostas dúbias.

    Vamos começar pelo que há de dúbio. O BIS está certo ao enfatizar os custos imensos dos booms propelidos pelo crédito. Mas ignora o contexto no qual as autoridades econômicas permitiram que eles ocorressem.

    Ignora, especialmente, os indícios de um excedente mundial de poupança demonstrado pelos juros de longo prazo baixos antes da crise e pelos imensos fluxos líquidos de capital dos países com boas oportunidades de investimento para países com oportunidades muito piores.

    De forma semelhante, ignora as mudanças adversas na distribuição de renda e no comportamento das empresas quanto à propensão a investir comparada à propensão a poupar.

    Uma vez mais, o BIS insiste em que perdas de produção com relação à tendência histórica são inevitáveis. Não resta dúvida de que a maioria das crises termina em grandes perdas no longo prazo.

    Mas, por volta dos anos 50, os Estados Unidos já haviam recuperado plenamente as perdas gigantescas de renda per capita com relação à tendência anterior a 1929, causadas pela maior das crises: a Grande Depressão.

    E isso não teria acontecido por que, ao contrário do presente pusilânime que vivemos, os Estados Unidos subsequentemente experimentaram o maior estímulo fiscal já empreendido –a Segunda Guerra Mundial?

    Posso imaginar que o BIS também lançaria alertas sobre tamanha irresponsabilidade fiscal.

    Vamos ao que o alerta tem de sábio. Primeiro, o BIS está certo ao reforçar os alertas quanto a booms de crédito. A alegria que eles trazem é fugaz, e a ressaca é agonizante.

    Isso é especialmente verdadeiro para países incapazes de captar recursos com facilidade em suas moedas, ou desprovidos de grandes reservas cambiais. É de fato necessária uma ação preventiva.

    Segundo, o BIS está certo ao enfatizar os argumentos em favor de acelerar o reconhecimento pós-crise das más dívidas e a reconstrução dos balanços dos devedores e dos intermediários financeiros. Esse processo de redução do endividamento quase sempre acontece devagar demais.

    Os professores Atif Mian e Amir Sufi ressaltam bastante esse argumento em seu importante livro "The House of Debt". Infelizmente, também é difícil politicamente fazer com que esse processo funcione.

    Por fim, vamos considerar as tolices. Existe de fato uma discussão importante a travar sobre o equilíbrio correto entre as reações fiscal e monetária às crises financeiras.

    Creio que confiamos demais na política monetária, que acarreta muitos dos perigos que o BIS corretamente enfatiza. Mas a ideia de que a melhor maneira de lidar com uma crise deflagrada por balanços com carga excessiva de dívidas esteja em retirar o apoio à demanda e até aceitar alegremente a deflação escancarada parece grotesca.

    O resultado, inevitavelmente, seria aumento ainda maior no endividamento real e com isso ondas ainda maiores de falências, que resultariam em economias mais fracas e assim em aumento ainda maior do endividamento.

    Os motivos para abandonar o consenso pré-keynesiano eram fortes, não importa o que pense o BIS (e muito mais gente). O BIS tem direito a alertar. Os bancos centrais deveriam ouvir com educação. Mas também deveriam rejeitar porções importantes do que o BIS recomenda.

    martin wolf

    É comentarista chefe de Economia no jornal britânico 'Financial Times'. Participa do Fórum de Davos desde 1999 e do Conselho Internacional de Mídia desde 2006.
    Escreve às quartas.

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