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    Martin Wolf

    A Alemanha é o grande problema da zona do euro

    11/05/2016 12h21

    Por que o pensamento da Alemanha, um país tão convencional, é tão peculiar quando o assunto é macroeconomia? E isso importa?

    A resposta à segunda questão é que sim, isso importa. Parte da resposta à primeira é que a Alemanha é um país credor. A crise financeira lhe deu voz dominante nos assuntos da zona do euro. O que importa quanto a isso é o poder, não o direito. Os interesses dos credores são importantes. Mas são interesses parciais, não gerais.

    As queixas recentes tomam por foco as políticas monetárias adotadas pelo Banco Central Europeu (BCE), especialmente as taxas de juros negativas e o relaxamento quantitativo. Wolfgang Schäuble, o ministro das Finanças alemão, chegou a afirmar que cabia ao BCE metade da responsabilidade pela ascensão do Alternativa para a Alemanha, um partido antieuro. Esse é um ataque extraordinário.

    As críticas às políticas do BCE são amplas: elas tornam desnecessárias reformas, nos membros recalcitrantes; não conseguiram reduzir o endividamento; solapam a solvência das seguradoras, fundos de pensão e bancos de poupança; mal conseguiram manter a inflação acima de zero; e fomentam a raiva quanto ao projeto europeu. Em resumo, a política do BCE se tornou uma grande ameaça à estabilidade.

    Tudo isso se enquadra à visão convencional alemã. Como argumenta Peter Bofinger, um membro herege do conselho de especialistas econômicos alemão, essa tradição remonta a Walter Eucken, um dos influentes pais do ordoliberalismo do pós-guerra. Sob essa abordagem, a macroeconomia ideal tem três elementos: um orçamento equilibrado (quase) o tempo todo; estabilidade de preços (com preferência assimétrica por deflação); e flexibilidade de preços.

    Trata-se de uma abordagem razoável para uma economia pequena e aberta. Pode funcionar para um país grande, como a Alemanha, dotado de indústrias altamente competitivas e capacitadas para o comércio internacional. Mas não se pode generalizar a abordagem para uma economia continental, como a da zona do euro. O que funciona para a Alemanha pode não funcionar para uma economia três vezes maior e muito mais fechada ao comércio externo.

    Vale apontar que no quarto trimestre de 2015, a demanda real na zona do euro estava 2% mais baixa que no primeiro trimestre de 2008, enquanto nos Estados Unidos ela era 10% mais alta. Essa severa fraqueza na demanda não é levada em conta na maioria das queixas alemãs.

    O BCE está certo ao tentar impedir uma espiral deflacionária em uma economia que sofre de demanda cronicamente fraca. Como insiste Mario Draghi, o presidente do BCE, as taxas de juros baixas ditadas pelo banco não são o problema. Elas são, em lugar disso, "o sintoma"... de uma demanda insuficiente por investimento.

    A história da economia da Alemanha desde suas reformas de mercado de trabalho no começo dos anos 2000 demonstra que é muito improvável que "reformas estruturais" resolvam esse problema. O mais importante fato macroeconômico sobre o país é que este é incapaz de absorver quase um terço de sua poupança interna, a despeito das taxas de juros ultrabaixas.

    Em 2000, antes das reformas - que reduziram os custos trabalhistas e a renda dos trabalhadores -, as empresas alemãs investiam substancialmente mais que sua receita retida. Hoje o oposto é verdade. Com os domicílios em superávit e o governo em equilíbrio orçamentário, emergiu um vasto superávit externo.

    Por que outras pessoas deveriam se provar capazes de uso produtivo da poupança que os alemães aparentemente não podem usar? Por que reformas estruturais em outros países, como advoga a Alemanha, gerariam uma disparada de investimentos no país? Por que, especialmente, se deveria esperar que o endividamento caia quando a demanda e o crescimento geral são tão fracos na zona do euro como um todo?

    O que aconteceu, em lugar disso, foi a conversão da zona do euro em uma Alemanha mais fraca. O balanço em conta corrente da zona do euro deve atingir superávit de perto de 5% do PIB (Produto Interno Bruto), de 2008 a 2016. Cada país membro estará ou em equilíbrio ou registrando superávit. A zona do euro depende da disposição de terceiros quanto a continuar gastando e captando dinheiro emprestado, que ela mesma agora rejeita.

    Mas o resto do mundo também é cauteloso. O BCE adotou taxas reais de juros negativas (e nominais) porque a poupança adicional hoje vale muito pouco. A instituição também aprendeu com os resultados assustadores de uma alta de juros em 2011. O relaxamento adotado de 2012 em diante pelo menos está dando frutos na forma de uma recuperação significativa, se bem que inadequada; a demanda real cresceu em 4% desde seu ponto mais baixo no primeiro trimestre de 2013, e a inflação básica, embora de apenas 1%, pelo menos se estabilizou. Isso não é fracasso. É sucesso.

    É inevitável que políticas como essas sejam impopulares em países credores. Mas o argumento de que uma política monetária frouxa demais é a ameaça ignora os perigos causados por um aperto excessivo. Presume que a deflação não represente problema.

    Mas esta elevaria o endividamento real, solaparia a flexibilidade dos salários reais e até mesmo restringiria a efetividade da política monetária, já que seria muito mais difícil gerar taxas reais de juros negativas quando necessário. Uma espiral deflacionária seria ameaça muito maior do que os juros negativos.

    Acima de tudo, a zona do euro fracassará se for operada apenas em benefício dos credores. A política pública precisa encontrar um equilíbrio. A determinação do BCE de evitar a deflação é parte importante dessa meta. Conseguir uma demanda mais balanceada em nível nacional é outra. Uma grande deficiência de demanda (em relação à oferta agregada) na maior economia da zona do euro é altamente problemática. O "procedimento de desequilíbrio excessivo" da União Europeia deveria ser muito mais crítico quanto aos superávits alemães.

    As ideias e interesses da Alemanha são de imenso interesse para a zona do euro. Mas não devem determinar tudo. Se a Alemanha acreditar que isso debilita fatalmente a legitimidade do projeto europeu, deveria exercer sua opção de saída. Fazê-lo envolveria aceitar desordenamento ainda maior em curto prazo. Mas, enquanto o país permanecer no euro, deve aceitar que o BCE tem um trabalho a fazer. Se o banco central o fizer, não garantirá que a zona do euro funcione bem. Mas fará uma contribuição vital para isso.

    Tradução de PAULO MIGLIACCI

    martin wolf

    É comentarista chefe de Economia no jornal britânico 'Financial Times'. Participa do Fórum de Davos desde 1999 e do Conselho Internacional de Mídia desde 2006.
    Escreve às quartas.

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