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    Martin Wolf

    Bancos centrais: casas de penhores de último recurso

    01/06/2016 10h35

    Será que haverá uma nova grande crise financeira? Como disse Hamlet sobre a queda de um pardal: "Se vier agora, não virá depois. Se não vier depois, virá agora. Se não vier agora, um dia virá —a prontidão é tudo". O mesmo se aplica aos bancos. Foram concebidos para quebrar. E um dia certamente quebrarão.

    Um livro recente explora não apenas essa realidade como uma solução radical e original para os problemas. O que torna mais que justificada a atenção a essa sugestão é o fato de que o autor tenha ocupado posição central no establishment monetário antes e durante a crise. Trata-se de lorde Mervyn King, antigo presidente do Banco da Inglaterra; o título do livro é "The End of Alchemy".

    O título é apropriado: a alquimia tem posição central no sistema financeiro; além disso, os bancos, como a alquimia, são uma ideia medieval, que nós ainda não descartamos. O argumento de lorde King é que devemos fazê-lo, agora.

    Como afirma o lorde King, a alquimia é "a crença de que dinheiro mantido nos bancos pode ser retirado sempre que o depositante assim desejar". A prática é um abuso da confiança, e em dois sentidos: funciona se, e apenas se, a confiança for forte; e é uma fraude.

    As instituições financeiras fazem promessas que, em situações financeiras prováveis, não serão capazes de cumprir. Nos bons momentos, é um negócio lucrativo. Nos maus momentos, as autoridades agem em resgate. Não admira, portanto, que as instituições financeiras tenham se tornado tão grandes e paguem tão bem.

    Considere qualquer grande banco. Ele terá uma ampla variedade de ativos arriscados e de longo prazo em suas carteiras, com hipotecas e empréstimos a empresas em posição de destaque. Financiará essas transações com seus depósitos (supostamente resgatáveis de imediato), captação de curto prazo e captação de longo prazo. Talvez 5% do total sejam bancados pelo capital da instituição.

    O que acontece se aqueles que emprestam dinheiro aos bancos decidirem que estes talvez não estejam solventes? Se forem depositantes ou seus empréstimos forem de curto prazo, podem requerer seu dinheiro de volta imediatamente. Sem ajuda do banco central, a única instituição capaz de criar dinheiro sem limite, os bancos não serão capazes de atender a essa demanda.

    Já que um colapso generalizado seria devastador para a economia, o apoio necessário sempre surge. Com o tempo, essa realidade criou uma "corrida da Rainha Vermelha": os governos tentam tornar o setor financeiro mais seguro e o setor financeiro explora esse apoio para realizar transações mais arriscadas.

    Em termos amplos, há duas soluções radicais disponíveis. Uma é forçar os bancos a se financiarem com capital muito maior. A outra é fazer com que equiparem seu passivo líquido a ativos líquidos e seguros. O requerimento de uma reserva de capital igual a 100% do passivo, o "plano de Chicago" proposto durante a Grande Depressão, é uma solução desse tipo.

    Se passivos líquidos e seguros financiarem ativos líquidos e seguros —e se passivos ilíquidos e de risco financiarem ativos ilíquidos e inseguros—, a alquimia desaparece. As finanças estariam seguras. Infelizmente, o fim da alquimia também acabaria com boa parte da disposição do sistema a assumir riscos.

    O lorde King oferece uma nova alternativa. Os bancos centrais continuariam a funcionar como fontes de crédito de último recurso. Mas não seriam mais forçados a fazer empréstimos contra virtualmente qualquer ativo, já que essa possibilidade mesma deve criar risco moral.

    Em lugar disso, eles chegariam com antecedência a acordo sobre os termos pelos quais fariam empréstimos lastreados por ativos, em uma crise, incluindo haircuts [reduções parciais no principal de uma dívida]. A dimensão desses haircuts seria um "imposto sobre a alquimia". O valor seria estabelecido em nível rigoroso e não poderia ser alterado em uma crise. O banco central se tornaria "uma casa de penhores para todas as estações".

    O valor dos ativos líquidos seria conhecido, assim. Eles consistiriam das reservas retidas no banco central mais o valor de caução acordado para quaisquer outros ativos. Em longo prazo, argumenta o lorde King, os ativos líquidos, definidos por esse critério, estariam equiparados ao passivo líquido de uma instituição, definido como empréstimos com vencimento em um ano ou menos.

    Esse esquema tem diversas vantagens. Primeiro, reconhece que só o banco central é capaz de criar a liquidez necessária, em uma crise. Segundo, oferece um caminho para um mundo sem alquimia. Terceiro, oferece uma opção entre a situação atual e um setor bancário com reservas equivalentes a 100% de seu passivo.

    Quarto, eliminaria o risco moral, já que a penalidade pela obtenção de liquidez seria definida com antecedência. Quinto, exploraria as circunstâncias atuais, incluindo as reservas criadas pelo relaxamento quantitativo e a infraestrutura criada pelos bancos centrais para avaliar e gerenciar cauções. Sexto, a regulamentação poderia então ser reduzida a duas regras: um nível máximo de alavancagem (de no máximo 10 para um) e a regra de que o valor promissório dos ativos no banco central deve exceder o valor dos passivos líquidos.

    No segundo trimestre de 2015, o valor das cauções oferecidas pelos bancos britânicos ao Banco da Inglaterra era de 314 bilhões de libras e o das reservas de capital dos bancos era de 317 bilhões de libras. Isso representa ativos líquidos totais de 631 bilhões de libras.

    O total pode ser comparado a depósitos de 1,82 trilhão de libras. Com o tempo, essa disparidade poderia ser eliminada. O Banco da Inglaterra deveria tornar permanentes as reservas existentes. Poderia elevar as reservas por meio de novos aumentos permanentes na base monetária. Por fim, poderia chegar a acordo sobre o valor promissório de novos ativos.

    Trata-se de um conjunto radical e interessante de propostas. Se a regra proposta estivesse em vigor, as únicas pessoas interessadas em correr de um banco em crise seriam os credores de empréstimos de longo prazo e os acionistas.

    Mas se o preço das ações despencasse e os empréstimos de longo prazo secassem, os gestores do banco sofreriam o tipo certo de pressão. E também haveria tempo para resolver a posição financeira de instituições em dificuldade. Se o capital se provar insuficiente, o prejuízo recairia sobre os credores de longo prazo em uma ordem predefinida.

    A estrutura proposta tem suas desvantagens. Os valores promissórios teriam de variar de acordo com as condições econômicas, o que criaria certo grau de desgaste. Mas trata-se de uma tentativa corajosa de disciplinar um sistema financeiro que faz promessas que não é capaz de cumprir.

    No mínimo, o custo de fazer essas promessas seria tornado previsível e transparente. A alquimia seria menos lucrativa; os bancos teriam capitalização melhor; e as corridas de credores de curto prazo aos bancos desapareceriam. Essas ideias merecem ser consideradas de mente aberta.

    Tradução de PAULO MIGLIACCI

    martin wolf

    É comentarista chefe de Economia no jornal britânico 'Financial Times'. Participa do Fórum de Davos desde 1999 e do Conselho Internacional de Mídia desde 2006.
    Escreve às quartas.

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