• Colunistas

    Sunday, 19-May-2024 10:48:35 -03
    Martin Wolf

    Brexit coloca em risco a confiança dos desconhecidos

    15/06/2016 11h37

    Suponha que a campanha pela saída britânica da União Europeia, que poderia ser chamada de Projeto Mentira, vença o referendo da semana que vem. Até que ponto poderiam ser ruins as consequências econômicas da decisão, nos próximos anos? Infelizmente, poderiam ser de fato muito ruins.

    Mark Carney, presidente do Banco da Inglaterra, destacou ao lançar o relatório da instituição sobre a inflação, em maio, que "o [comitê de política monetária] considera que os riscos mais significativos em sua projeção se relacionam ao referendo". Além disso, ele acrescentou, "votar por sair da União Europeia poderia ter efeitos econômicos materiais —sobre a taxa de câmbio, a procura e o potencial de oferta da economia —capazes de afetar a formulação correta da política monetária". O mais recente relatório sobre a inflação acrescenta que a campanha pela saída já podia ser considerada parcialmente responsável pela desvalorização da libra.

    O Tesouro do Reino Unido ofereceu uma análise cuidadosa dos riscos em curto prazo. Ela é, inevitavelmente, controversa. Mas é importante lembrar que o Tesouro é notoriamente cético quanto à União Europeia. O principal cenário envolveria Produto Interno Bruto (PIB) 3,6% mais baixo dois anos depois que o país votasse pela saída, um desemprego 520 mil trabalhadores mais alto, e uma desvalorização de 12% para a libra. Um cenário pior envolveria PIB 6% mais baixo, 820 mil desempregados a mais e uma queda de 15% na libra. O Instituto de Estudos Fiscais acrescentou que —em lugar de uma melhora de oito bilhões de libras ao ano na posição fiscal do país se a contribuição líquida para a União Europeia caísse —o deficit orçamentário seria entre 20 bilhões e 40 bilhões de libras mais alto em 2019-2020, em caso de saída.

    Muito mais importante que essas previsões, inevitavelmente incertas, é a análise dos três canais por meio dos quais a saída britânica da União Europeia (Brexit) funcionaria em curto prazo. Eles são o "efeito de transição", que viria da percepção de que o Reino Unido se tornaria permanentemente mais pobre; o "efeito da incerteza", que viria da inevitável ignorância sobre o regime de política econômica posterior à saída; e por fim o "efeito da condição financeira", que operaria por meio da percepção de que o Reino Unido se tornou um lugar menos atraente e de maior risco, para o investimento de dinheiro.

    Uma questão importante é determinar se as possibilidades modeladas capturam todos os riscos menos prováveis. E a resposta é que não o fazem.

    O Tesouro argumenta que a economia poderia chegar a um "ponto de inflexão" a partir do qual desfechos piores ocorreriam —assim, "um choque para a libra poderia causar uma súbita contração na captação dos bancos do Reino Unido em moda estrangeira". Porque cerca de metade da captação de curto prazo dos bancos no atacado acontece em moedas estrangeiras, o acesso reduzido a esse dinheiro poderia causar instabilidade financeira adicional significativa.

    Uma fonte evidente de fragilidade é o imenso deficit em conta corrente. Ele atingiu os 7% do PIB no trimestre final de 2015. Carney declarou que o Reino Unido depende da "generosidade de desconhecidos" para sustentar seu atual padrão de vida. Mais precisamente, depende de sua confiança. O deficit atual em conta corrente acarreta riscos mesmo em tempos normais. Mas a incerteza causada pela Brexit poderia causar uma súbita reversão dos fluxos de capital. O investimento estrangeiro líquido no Reino Unido poderia desabar, por exemplo. Os resultados poderiam incluir abrupta queda da libra, queda nos preços dos títulos denominados em libras e um salto na taxa de inflação.

    Se isso fosse causado por um choque negativo na procura, o comitê de política monetária poderia responder adotando uma política expansiva. Mesmo assim, poderia se ver forçado a políticas heterodoxas, entre as quais possivelmente taxas negativas de juros, tendo em vista o quanto estão baixos os juros atuais. Mas se a Brexit também fosse vista como um choque negativo de oferta (o que quase certamente aconteceria), os argumentos em favor de uma compensação monetária seriam mais fracos. Preços mais altos seriam, assim, uma maneira de produzir a supressão necessária da demanda real.

    Uma fonte crucial de fragilidade, sobre a qual o Tesouro naturalmente nada diz, é a política. Depois do referendo, o Reino Unido deixaria de ter um governo, em qualquer senso significativo do termo. O Partido Conservador, com sua minúscula maioria, se veria profundamente dividido em suas alas pró e anti-Europa. O Partido Trabalhista, de oposição, já está profundamente dividido sobre essa e muitas outras questões.

    Desse lodaçal seria necessário emergir um governo competente, com uma visão quanto ao que deseja obter nas complexas negociações com a União Europeia e o resto do planeta. O governo teria então de empreender essas negociações junto a parceiros que têm muitas outras preocupações e encarariam o Reino Unido com uma mistura venenosa de hostilidade e desdém. Teria de decidir se mantém ou modifica leis criadas durante as mais de quatro décadas de participação do país na União Europeia e, caso decida modificá-las, teria também de decidir como fazê-lo. O novo governo teria de administrar o impacto da Brexit sobre a coerência do Reino Unido e suas relações com a Irlanda. E enquanto estivesse fazendo tudo isso, teria de administrar a economia, a posição fiscal e as minúcias da vida política. Quem quer que acredite que os líderes da campanha pela saída seriam capazes disso está certamente usando drogas ilegais.

    Além disso, as consequências da Brexit dificilmente se limitariam ao Reino Unido. O impacto direto da instabilidade econômica britânica sobre o mundo poderiam não ser grandes, ainda que a zona do euro não esteja em posição de enfrentar choques negativos. Mas os efeitos indiretos poderiam ser consideráveis. Os espectadores externos podem considerar a saída britânica como sinal de que a União Europeia é um navio a ponto de afundar. Dentro da União Europeia, os nacionalistas e os xenófobos ganhariam força. A Brexit poderia, assim, se provar um forte golpe contra a União Europeia. No mínimo, forçaria um grande dispêndio de atenção e esforço. Mas talvez a consequência mais importante pudesse ser como um sinal do imenso poder das forças populistas. Se o Reino Unido pode escolher a Brexit, Donald Trump talvez se torne presidente dos Estados Unidos.

    A saída britânica, em resumo, poderia ser um grande choque econômico, e não só para o Reino Unido. Isso acontece em larga medida por conta da fragilidade que a precede e das muitas incertezas que se seguiriam a ela. O referendo em si já é uma irresponsabilidade. Seu resultado pode bem se provar devastador.

    Tradução de PAULO MIGLIACCI

    martin wolf

    É comentarista chefe de Economia no jornal britânico 'Financial Times'. Participa do Fórum de Davos desde 1999 e do Conselho Internacional de Mídia desde 2006.
    Escreve às quartas.

    Fale com a Redação - leitor@grupofolha.com.br

    Problemas no aplicativo? - novasplataformas@grupofolha.com.br

    Publicidade

    Folha de S.Paulo 2024