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    Martin Wolf

    Por que acredito que o lugar do Reino Unido seja a Europa

    22/06/2016 10h33

    O Reino Unido é um país europeu. A questão que seu povo deve enfrentar no referendo de amanhã é sobre que tipo de país europeu ele será. Estará à margem da Europa ou exercerá influência apropriada à sua história e ao seu tamanho? A campanha do referendo foi lastimável. Mas isso não o torna desimportante. Pelo contrário: uma decisão de sair prejudicaria não só o Reino Unido, mas a Europa, o Ocidente e o planeta.

    Ao tomar essa decisão, os eleitores racionais precisam compreender a assimetria que ela envolve. Como país soberano, o Reino Unido pode mudar sua decisão de continuar na União Europeia. Mas não poderia mudar a decisão de sair. Os eleitores deveriam exercer essa opção de saída se e apenas se estiverem certos de que jamais se arrependerão de fazê-lo. E não há como ter essa certeza. Assim, a decisão de exercer agora essa opção seria irracional.

    Mas cálculos frios como esse não falam aos corações. As pessoas que favorecem a saída argumentam que seus oponentes não acreditam o bastante no Reino Unido. Já eu penso que devamos permanecer porque acredito demais no meu país.

    Como filho de refugiados agradecidos pelo abrigo contra Hitler, acredito que a decência discreta, as tradições democráticas e o liberalismo do Reino Unido oferecem à Europa algo de insubstituível. A Europa democrática de hoje tem uma dívida imensurável para com políticas britânicas, valores britânicos e a coragem britânica. O Reino Unido perderia imensamente se cortasse seus laços com o continente. Mas o continente também sairia perdendo.

    No entanto, os argumentos daqueles que favorecem a saída não são inválidos. O que eles são, na verdade, é exagerados e incompletos.

    O fato mesmo que o Reino Unido seja capaz de realizar esse referendo demonstra que o país continua soberano. O repositório de autoridade legítima é e continuará a ser um Parlamento devidamente eleito. A questão, no entanto, é como exercer esse poder executivo de maneira efetiva e democrática.

    Aqueles que favorecem a saída argumentam que isso é possível se e só se todas as decisões que afetarem o povo britânico forem tomadas com o consentimento de um parlamento eleito democraticamente. Basta pensar um pouco mais sobre o assunto para perceber que isso é absurdo. Imensa proporção das decisões que afetam o Reino Unido são tomadas por instâncias sobre as quais os eleitores não têm controle algum, já que elas são estrangeiras.

    Para afetar essas decisões, o Parlamento precisa delegar poderes a órgãos internacionais, de maneira a reforçar sua influência sobre eles. A União Europeia é um exemplo especialmente intrusivo. Mas participar dela torna o poder britânico mais efetivo.

    Uma vez mais, a escala da imigração vem sendo uma surpresa. Seus benefícios foram descritos com exagero. O mesmo, porém, se aplica a seus custos. Deveríamos ter chegado a um acordo quanto a controles transicionais mais longos e arranjos de salvaguarda com relação à migração interna. Também poderíamos ter administrado a imigração muito melhor.

    Mesmo assim, é crucial apontar que a imigração líquida dos países de fora da União Europeia é cumulativamente muito superior à imigração advinda de outros países da União Europeia; e é altamente provável que esta segunda se reduza, agora. Além disso, em longo prazo, os jovens e esforçados trabalhadores da União Europeia provavelmente se enquadrarão muito bem ao Reino Unido.

    Acima de tudo, nada pode justificar a xenofobia e as mentiras descaradas dos defensores de uma saída da União Europeia sobre esse assunto. Os liberais que são parte da campanha pela saída e tagarelam sem parar sobre o livre mercado deveriam ter vergonha das pessoas com quem escolheram conviver.

    Há também o argumento de que a economia da União Europeia não está indo bem. A extensão do euro a todos os países que atualmente empregam a moeda foi de fato um grande erro. Mas a ideia de que o Reino Unido poderia se proteger contra os fracassos da União Europeia ao deixá-la é igualmente absurda. A União Europeia continuará a ser nosso maior parceiro comercial por décadas, provavelmente para sempre, quer sejamos parte dela, quer não. E, de fora, o Reino Unido não teria voz.

    Assim, até mesmo os mais fortes argumentos em favor da saída são frágeis. Em outros aspectos, eles são catastroficamente frágeis. Os efeitos econômicos de curto e os de longo prazo ficarão entre ruins e desastrosos. Os economistas que defendem a saída não conseguiram abalar a virtual unanimidade na opinião dos especialistas quanto a isso.

    A resposta da campanha em favor da saída foi denegrir a ideia de especialização. Isso é claramente idiota. E o pior é que os proponentes da saída nem mesmo fingiram ter um plano coerente para depois do referendo. A única certeza seriam anos de incerteza -e não só para o Reino Unido. Os motivos para que um país que carrega as cicatrizes de uma imensa crise financeira salte desse modo para o abismo são incompreensíveis por qualquer pessoa sã.

    Mas seria absurdamente limitado pensar apenas no que a saída representa para o Reino Unido. A questão é muito mais importante que isso. Desprezivelmente, Boris Johnson comparou a União Europeia ao Reich de Hitler. A verdade é exatamente o oposto: a União Europeia desempenhou um imenso papel em difundir a democracia pelo continente. Ela representa uma tentativa de firmar a prosperidade e cimentar a cooperação entre as nações. É imperfeita. Mas jamais no passado a Europa foi tão próspera e tão pacífica. O desafio é tornar a União Europeia melhor.

    É por isso que o envolvimento britânico continua a ser tão importante. Sem ele, a efetividade da União Europeia, e mesmo sua sobrevivência, estariam em questão. Por outro lado, ela poderia se unir como uma entidade integrada sobre a qual o Reino Unido teria zero influência. Qualquer desses desfechos seria certamente um pesadelo estratégico para o Reino Unido.

    O Reino Unido é muito mais que um participante imensamente importante da União Europeia. Como grande potência europeia e o país mãe do mundo de fala inglesa, ele serve de ponto de contato entre essas duas coletividades. A retirada britânica seria um sinal de fraqueza do Ocidente e de desarranjo mundial. É por isso que todos os países amigos do Reino Unido favorecem sua permanência. A retirada marcaria o começo de uma dissolução que resultaria em crescente desordem, não apenas na Europa mas muito além.

    Ninguém pode deixar de reconhecer a profunda desconfiança quanto às elites que anima a campanha pela saída britânica do Reino Unido. Mas a xenofobia populista nunca é a resposta certa. No final dessa cansativa campanha, os eleitores precisam ter em mente quem eles são e o peso daquilo que devem decidir. Sim, os britânicos bem podem sobreviver sozinhos. Mas qual seria o motivo para que tentem fazê-lo? O Reino Unido pode fazer muito melhor. Que escolha o envolvimento. Que escolha a Europa.

    Tradução de PAULO MIGLIACCI

    martin wolf

    É comentarista chefe de Economia no jornal britânico 'Financial Times'. Participa do Fórum de Davos desde 1999 e do Conselho Internacional de Mídia desde 2006.
    Escreve às quartas.

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