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    Martin Wolf

    Mercados ensinam lição dura a Theresa May e ao Reino Unido

    12/10/2016 08h00

    Frantzesco Kangaris/AFP
    British Interior Minister Theresa May addresses a press conference in central London on June 30, 2016. British interior minister Theresa May announced her bid to succeed Prime Minister David Cameron on Thursday, saying negotiations to leave the European Union should not begin before the end of the year. / AFP PHOTO / FRANTZESCO KANGARIS
    A primeira-ministra britânica Theresa May durante conferência em Londres

    Os políticos propõem e os mercados dispõem. A semana passada começou com uma declaração da primeira-ministra britânica Theresa May quanto aos seus planos para a saída de seu país da União Europeia, o "brexit".

    Os mercados de câmbio reagiram derrubando o valor dos ativos do Reino Unido. O Reino Unido está determinado a "retomar o controle" sobre seu destino. Mas soberania formal não quer dizer poder. O governo britânico anuncia suas intenções. A reação dos outros determina os resultados.

    Os dois discursos feitos por May na conferência de seu partido na semana passada tornam um "brexit" contencioso de longe o resultado mais provável. Isso acontece por razões tanto substantivas quanto regimentais.

    A razão regimental é que ela decidiu invocar o Artigo 50 do Tratado de União Europeia, que dispõe sobre a saída de países membros, no máximo em março do ano que vem. Isso daria a iniciativa aos demais membros e colocaria o divórcio como foco da negociação, e com prazo de apenas dois anos para conclusão. Dada a complexidade do processo decisório da União Europeia, o tempo é curto demais para negociar uma saída feita sob medida.

    A razão substantiva para que um "brexit" contencioso seja imensamente provável é que a primeira-ministra descartou praticamente qualquer outra coisa que não um acordo feito sob medida. Em suas palavras, "seremos um país plenamente soberano e independente, um país que não fará mais parte de uma união política com instituições supranacionais capazes de se sobrepor ao Parlamento e aos tribunais da nação... Assim, não teremos o 'modelo norueguês'. Não teremos o 'modelo suíço'. Teremos um acordo entre um Reino Unido independente e soberano e a União Europeia".

    Além disso, os negociadores britânicos na área de comércio internacional simplesmente não terão como negociar acordos comerciais compensatórios com o resto do mundo. Isso acontece em parte porque essa possibilidade não existe de maneira plausível, já que a União Europeia recebe cerca de metade das exportações britânicas. E também porque o Reino Unido não será visto como parceiro de negociação confiável até que conclua seu acordo com a União Europeia. Até março de 2019, portanto, o mais provável é que o Reino Unido se veja desprovido de acesso preferencial a qualquer mercado.

    E isso está longe de ser tudo. May também declarou que "se você acredita ser um cidadão do mundo, você é um cidadão de lugar nenhum". Ela negou a possibilidade de que uma pessoa seja tanto cidadã do mundo quanto cidadã de algum lugar. Mas muitos dos estrangeiros capacitados de quem o Reino Unido depende profissionalmente se veem exatamente assim.

    Por que desejariam permanecer em um país cuja primeira-ministra parece desprezá-los? A xenofobia foi parte importante da campanha pelo "brexit", não importa o que seus proponentes digam agora. Será que alguém acredita que linguagem como essa não terá efeito sobre os potenciais trabalhadores e investidores, ou, aliás, sobre os nossos parceiros na União Europeia?

    Palavras insensatas têm consequências. Os objetivos extremistas do governo britânico agora se tornaram claros. Os investidores responderam a isso como seria de esperar, rebaixando o valor dos ativos do país da maneira mais simples: vendendo libras. A taxa real de câmbio britânica está perto do ponto que atingiu no final de 2008, logo depois da crise financeira. Computados em dólares, os índices do mercado de ações estão abaixo de suas marcas anteriores ao referendo, e também caíram com relação a outros mercados.

    Uma desvalorização dessa ordem era inevitável para os ativos britânicos. Reflete a crença, justificada, dos investidores em que as perspectivas econômicas do país pioraram. E o desempenho pobre do país nas exportações, no passado, sugere que a depreciação ainda não é grande o suficiente para gerar a mudança necessária na estrutura da economia, em direção à produção de bens e serviços comerciáveis internacionalmente.

    Além disso, é altamente provável que os imensos deficit em conta corrente atuais se provem insustentáveis depois do "brexit". Caso isso aconteça, o Reino Unido precisará de um grande declínio em seus gastos agregados, com relação à renda. A desvalorização cambial sozinha dificilmente será capaz de produzir esse feito. A política macroeconômica também precisará de um aperto. Mas esse aperto é exatamente o que o Banco da Inglaterra e a nova equipe do Tesouro desejam desesperadamente evitar.

    É verdade que os influxos de capital necessários a financiar o imenso deficit externo do Reino Unido podem continuar, sustentados pela percepção de que a terra da libra desvalorizada por fim se tornou uma pechincha. Mas suponha que os influxos se paralisem, em lugar disso, quando os investidores começarem a se sentir nervosos sobre o rumo escolhido pelo governo. Nesse caso, a moeda poderia despencar. O rendimento dos títulos do Tesouro britânico poderia disparar.

    As autoridades econômicas enfrentariam uma enrascada conhecida das economias emergentes que perdem a confiança dos investidores: a necessidade de elevar taxas de juros e reduzir deficit fiscais em meio a uma crise. Isso é provável?: Não. A boca mole do governo torna esse tipo de desfecho um tanto mais provável:? Sim.

    O governo então aprenderia sobre os limites da soberania, em uma economia aberta. As posições de Philip Hammond, o chanceler do Erário [ministro das Finanças], que lembrou ao seu partido na semana passada que no referendo de 23 de junho o povo britânico não votou em "se tornar mais pobre ou menos seguro", nesse caso passariam a valer mais, e as dos defensores do "brexit" que são parte do gabinete perderiam peso.

    Em uma crise, o impensável se torna pensável. Invocar o Artigo 50 sem aprovação do Parlamento poderia ser impossível. E certamente deveria ser impossível. O país, por margem muito pequena, votou em alguma forma de "brexit". Mas o governo não tem mandato para a versão extremista que está escolhendo. Além disso, os defensores do "brexit" insistem em que seu objetivo é restaurar a soberania do Parlamento.

    Por que, então, o governo planeja ignorar o Parlamento quando essas decisões estiverem sendo tomadas?

    O que propelia os defensores da saída da União Europeia, nos dizem, era também "o princípio de que decisões sobre o Reino Unido devem ser tomadas no Reino Unido". Os mercados de câmbio demonstram o quanto esse princípio é vazio. Os parceiros britânicos na União Europeia em breve demonstrarão uma vez mais esse mesmo ponto. A premissa da campanha em favor de deixar a União Europeia era falsa: muitas decisões que afetam o Reino Unido serão sempre tomadas fora do país.

    Mas essa verdade dificilmente vai impedir que o trem do "brexit" parta em sua jornada, agora com horário marcado. Detê-lo requereria um milagre; ou melhor: uma crise. É provável que isso aconteça? Não. É possível? Sim.

    Tradução de PAULO MIGLIACCI

    martin wolf

    É comentarista chefe de Economia no jornal britânico 'Financial Times'. Participa do Fórum de Davos desde 1999 e do Conselho Internacional de Mídia desde 2006.
    Escreve às quartas.

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