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    Martin Wolf

    Trump encara a realidade do comércio mundial

    23/11/2016 09h47

    Será que a China conseguirá resgatar a globalização do comércio agora que ela está a ponto de ser rejeitada pelos Estados Unidos, sob a presidência de Donald Trump? Será que a ameaça de liderança chinesa ou a pressão de empresas norte-americanas persuadirão Trump a reconsiderar os tratados comerciais, até mesmo o TTP (Tratado Transpacífico) negociado pelo presidente Obama?

    A resposta à primeira pergunta é: apenas até certo ponto. A China não seria capaz de substituir uma versão engajada e aberta dos Estados Unidos mesmo que quisesse —mas poderia ajudar. Quanto às intenções de Trump: elas são fixas ou negociáveis?

    O presidente Xi Jinping nesta semana prometeu uma admirável nova ordem de abertura ao comércio e investimento, sob a liderança de Pequim. O TPP de Obama tinha por objetivo excluir a China. Agora, Trump anunciou que os Estados Unidos abandonarão o acordo assim que ele assumir. Isso abre o caminho para que a China leve adiante sua proposta alternativa: a Parceria Econômica Regional Abrangente (RECP).

    Sete dos 12 supostos membros do TPP são potenciais membros da RCEP. Xi também ofereceu aos países da América Latina acesso à iniciativa "um cinturão, uma estrada", promovida pela China.

    Mas existem limites para a capacidade chinesa de substituir os Estados Unidos, quanto mais o Ocidente, no comércio mundial. Se considerarmos a participação no produto mundial bruto a preços de mercado, o que representa um indicador grosseiro do poder aquisitivo real, a fatia chinesa saltou de 4% em 2000 a 15% em 2016.

    A fatia da Ásia (incluindo o Japão) é de 31%. Os Estados Unidos e a União Europeia juntos respondem por 47% do produto bruto mundial. De modo semelhante, a despeito de seu rápido crescimento, a fatia chinesa nas importações mundiais foi de apenas 12% em 2015, enquanto a da Ásia foi de 36%. Os Estados Unidos e a União Europeia (excluído o comércio entre as nações da União Europeia) ainda respondiam por 31% das importações mundiais.

    Além disso, esses números subestimam o papel das economias mundiais de alta renda no comércio internacional de duas maneiras significativas. Primeira, boa parte da demanda final do planeta ainda provém desses países; a preços de mercado, o consumo da China era equivalente a cerca de um terço do consumo combinado dos Estados Unidos e União Europeia em 2015.

    Segunda, e muito mais importante, o conhecimento que propele boa parte do comércio internacional contemporâneo vem de empresas das economias de alta renda. As companhias chinesas não tem know-how de profundidade comparável a oferecer.

    Em "The Great Convergence", Richard Baldwin, da Graduate School de Genebra, ilumina com muita clareza a natureza do comércio internacional na presente era —a "segunda globalização" desde a revolução industrial.

    Seu ponto central é que o comércio internacional é sempre limitado pelos custos da distância, que incluem transporte, comunicação e contato face a face. Na primeira globalização, a do final do século 19, o rápido crescimento do comércio internacional foi propelido pela queda no custo de transporte dos bens. Isso tornou possível criar um intercâmbio mundial de produtos manufaturados por matérias primas e produtos agrícolas, principalmente os das Américas e Australásia.

    Naquela era, porém, era impossível decompor o processo industrial. Para concorrer na indústria, um país tinha de dominar todas as capacitações necessárias. Como resultado, a manufatura, e com ela as vantagens propiciadas por economia de escala e pelo processo de aprender ao fazer, se concentraram nas economias de alta renda.

    Além disso, trabalhadores de capacitações modestas compartilharam de boa parte desses ganhos, nos países em questão —obtendo, como resultado, rendas sem precedentes e influência política. Isso aconteceu porque eles tinham acesso privilegiado aos frutos do conhecimento desenvolvidos dentro de suas economias.

    Até cerca de um quarto de século atrás, a única maneira de invadir esse círculo encantado era desenvolver indústria competitivas. E era difícil fazê-lo; poucos países o conseguiram. Mas na segunda globalização, os custos de comunicação caíram tanto que se tornou possível decompor (ou fragmentar) os processos de produção, com fabricação de componentes e sua montagem espalhada pelo mundo, sob o controle de indústrias ou compradores dotados do conhecimento requerido.

    Nas palavras de Baldwin, os operários da Carolina do Sul "não estão mais competindo com a mão de obra mexicana, o capital mexicano e a tecnologia mexicana, como acontecia nos 70. Eles estão concorrendo contra uma combinação quase insuperável de know-how americano e salários mexicanos".

    O capitalismo nacional se tornou mundial. Isso se aplica também a algumas atividades de serviços. A maioria das economias em desenvolvimento não foi capaz de tirar vantagem dessas oportunidades. Mas algumas foram - especialmente a China.

    A troca de produtos industrializados por matérias primas também continua, especialmente entre a China e seus fornecedores. Mas essa nova dinâmica de comércio internacional é a causa do protecionismo que conduziu Trump ao poder. A luta política agora é para determinar quem se beneficia do know-how desenvolvido por empresas de países de alta renda.

    A disputa desperta uma questão normativa: quem deveria vencer? E também desperta uma pergunta objetiva: quem vencerá? Trump vai optar por beneficiar os trabalhadores dos Estados Unidos em detrimento dos proprietários e dirigentes de companhias norte-americanas?

    Ou simplesmente fingirá que o faz, oferecendo gestos simbólicos —rejeitar a TPP, renegociar o Acordo Norte-Americano de Livre Comércio (NAFTA) ou ameaçar impor tarifas à China mas sem mexer muito com o comércio mundial em sua atual condição?

    Será que ele não poderia concluir, de fato, que dar à China a oportunidade de organizar o comércio mundial contraria os interesses dos Estados Unidos? Será que ele não virá a temer que, ao limitar o papel dos Estados Unidos na reordenação dos processos mundiais de produção, as empresas de seu país ficariam em desvantagem e poderiam até transferir porção maior de suas atividades para regiões que as acolham melhor?

    Não é possível para a Ásia como um todo, e muito menos a China isoladamente, manter por sua conta o dinamismo do comércio internacional. O Ocidente importa demais, especialmente para a China.

    Felizmente, as forças que favorecem o comércio internacional continuam muito potentes. Talvez nem mesmo Trump tenha a capacidade, ou a vontade política, necessária a desmantelá-las de todo.

    Tradução de PAULO MIGLIACCI

    martin wolf

    É comentarista chefe de Economia no jornal britânico 'Financial Times'. Participa do Fórum de Davos desde 1999 e do Conselho Internacional de Mídia desde 2006.
    Escreve às quartas.

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