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    Martin Wolf

    Para que o 'brexit' tenha sucesso, seus defensores precisam perder

    28/03/2017 17h56

    Em 29 de março, o governo britânico notificará a União Europeia sobre sua intenção de sair da organização. Será um grande momento em uma tragédia - uma tragédia para o Reino Unido mas também uma tragédia para a Europa. E uma maneira horrenda de celebrar o 60º aniversário da União Europeia.

    Mesmo que as negociações de saída corram bem, a decisão de deixar a União Europeia terá imensas consequências para o Reino Unido. Economicamente, o país perderá o acesso favorável ao maior - por larga margem - de seus mercados.

    Politicamente, a saída criará grande desgaste dentro do Reino Unido e com a Irlanda. Estrategicamente, ela removerá o Reino Unido de sua posição nos conselhos da Europa. O Reino Unido se tornará mais pobre, mais dividido e menos influente.

    Aqueles que preferem a saída britânica da União Europeia ("brexit") negarão tudo isso. Estão errados. Os indicadores quanto ao moderno comércio internacional são claros: distância é um fator muito importante. As cadeias de suprimento que unem bens físicos e serviços funcionam melhor quando as distâncias são curtas.

    Os modelos que os defensores da "brexit" utilizam para seus cálculos desconsideram essa realidade. Também é por isso que a criação de um mercado unificado exigiu uma harmonização substancial nos regimes regulatórios, para permitir um comércio transnacional relativamente isento de fricção.

    Os defensores da "brexit" também virão a descobrir que todos os acordos de comércio internacional impõem limites à autonomia de um país e, quanto mais um acordo promove a abertura de mercados, mais severos serão esses limites.

    Os defensores da "brexit" também descobrirão que geografia é destino, em termos políticos. O Reino Unido jamais poderá ser um país não europeu; sempre será afetado intimamente pelos desdobramentos no continente.

    No entanto, diante de uma Rússia ameaçadora, da indiferença dos Estados Unidos, do caos no Oriente Médio, da ascensão da China e da ameaça mundial da mudança do clima, o país agora decidiu retirar sua voz do sistema que organiza o seu continente. O Reino Unido não está mais no século 19; está no século 21. O isolamento não será esplêndido - será isolamento apenas.

    A saída do Reino Unido também é uma tragédia para a Europa. O Reino Unido vem sendo há muito o porta-voz de políticas liberais e democráticas. É uma das duas maiores potências militares do continente. Tem fortes elos com os países de fala inglesa. Tem perspectiva mundial.

    Pelo menos até agora, vinha sendo pragmático. Suas posições sobre o que beneficiaria a União Europeia (unificação do mercado e ampliação do quadro de membros) e o que a prejudicaria (a moeda comum) eram as certas.

    Apenas uma pessoa ignorante quanto à História sonharia que a Europa pode ser mais próspera, influente, democrática e liberal se a União Europeia se dissolver em seus 28 componentes nacionais. O sistema dos Estados nacionais se provou repetidamente instável.

    No caso atual, com a retirada cada vez maior dos Estados Unidos, o colapso da União Europeia poderia levar a uma luta pela hegemonia entre a Alemanha e a Rússia ou, pior, a um pacto entre elas à custa de vizinhos mais fracos. Se a União Europeia sobreviver, como espero, a Alemanha dominará. Não é o que os alemães querem. Por que os britânicos desejariam que isso aconteça?

    Mas o "brexit" vai acontecer, graças à insensatez de David Cameron ao concordar com o referendo, à sua incompetência nas negociações e aos erros cometidos na formulação do referendo. Levar adiante a "brexit" não é uma necessidade constitucional; a aplicação do resultado do referendo não é compulsória. Mas ela é politicamente necessária: sem isso, o Partido Conservador se esfacelaria.

    No entanto, o clima das negociações e seu resultado ainda não foram determinados. Sabemos que elas serão complexas e difíceis. Sabemos que o processo de retirada e a decisão quanto aos detalhes de um novo relacionamento não serão finalizados dentro do prazo de dois anos. Mas não sabemos como as negociações serão abordadas. Isso é menos verdade do lado da União Europeia, cujas prioridades são claras, do que do lado britânico.

    Chegar a um acordo é uma necessidade. Isso é mais evidentemente verdadeiro por motivos econômicos. Buscar obter acesso melhor a mercados relativamente desimportantes e ao mesmo tempo perder o acesso aos mais importantes mercados britânicos seria ridículo. Não chegar a acordo sobre o dinheiro devido, tratamento de pessoas, instituições compartilhadas, a natureza dos futuros arranjos comerciais e a transição rumo a eles envenenaria o futuro relacionamento.

    O Reino Unido pode perder mais no processo; o impacto sobre a Escócia poderia significar o fim do reino. Mas o efeito de um divórcio brutal sobre a União Europeia também seria grande.

    Se o objetivo é chegar a um acordo, o Reino Unido, como a parte mais fraca, terá de fazer concessões, começando pelo dinheiro devido à União Europeia. Essa não só é a coisa sensata a fazer como a coisa certa a fazer. O país tem obrigações advindas de suas quatro décadas de participação na União Europeia. Como país civilizado e digno de confiança, é preciso que as cumpra.

    Isso significa, por sua vez, que a primeira-ministra precisa estar preparada para se posicionar contra aqueles que preferem que não haja acordo. A posição de negociação da União é bastante razoável. O Reino Unido deveria se dispor a reciprocar. É preciso que o país faça concessões para garantir um relacionamento harmonioso e cooperativo no futuro.

    Theresa May declarou que "em minha visão, está claro que, para o Reino Unido, acordo nenhum é melhor do que um acordo ruim". É preciso esperar que ela não acredite mesmo nisso. Não chegar a um acordo seria péssimo para todos.

    May não tem mandato para colocar em prática sua ameaça de transformar o Reino Unido em um país de impostos baixos e regulamentação mínima. As divisões internas que essa estratégia criaria fariam com que as desavenças criadas pelo referendo parecessem brincadeira.

    O Reino Unido certamente precisa de um acordo, mas o mesmo vale para a União Europeia. A tragédia seria muito pior sem um acordo.

    Já não tenho esperança de que seja possível evitar o "brexit". Isso não significa que ela deva ser recebida positivamente.E muito menos significa que a maneira pela qual venha a acontecer não faz diferença.

    A primeira-ministra precisa chegar a um acordo que preserve ao máximo as relações políticas, econômicas e estratégicas com a União Europeia. A História julgará May com base no sucesso que ela obtiver quanto a isso.

    Tradução de PAULO MIGLIACCI

    martin wolf

    É comentarista chefe de Economia no jornal britânico 'Financial Times'. Participa do Fórum de Davos desde 1999 e do Conselho Internacional de Mídia desde 2006.
    Escreve às quartas.

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