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    Martin Wolf

    Capitalismo e democracia formam um estranho casal

    21/09/2017 15h53

    Ferguson
    Capitalism and democracy — the odd couple - Martin Wolf

    A democracia está em recessão. Depois de se espalhar pelo planeta entre os anos 70 e o começo dos 2000, ela está em recuo. Também em recuo está a crença em uma economia mundial liberal. Existe conexão entre os dois fatos? Sim. Democracia e capitalismo são um casal, mas seu casamento já passou por muitas turbulências. E hoje está vivendo um momento ruim.

    Larry Diamond, da Hoover Institution, propôs a ideia de uma "recessão na democracia". Roberto Foa, da Universidade de Melbourne, e Yascha Mounk, da Universidade Harvard, se referiram a uma "desconexão democrática", apontando para o deprimente recuo da crença na democracia, nos Estados Unidos e na Europa. Em seu mais recente relatório, a Freedom House afirma que "um total de 67 países sofreram recuos líquidos em seus direitos políticos e liberdades civis, em 2016, ante 36 que registraram avanços. Isso representa o 11º ano consecutivo em que os recuos superaram os avanços".

    Enquanto isso, a eleição de Donald Trump para a presidência dos Estados Unidos demonstra hostilidade para com o comércio liberal. A hostilidade com relação a Wall Street e a um setor financeiro internacional que se movimente livremente também é forte, tanto na direita quanto na esquerda. A oposição ao livre movimento de pessoas é onipresente.

    O banco de dados Polity IV, do Center for Systemic Peace, oferece um panorama inestimável quanto ao progresso da democracia de 1800 para cá. Entre 1800 e 2016, o número de regimes políticos que a organização considera como "democráticos" subiu de zero, em 22 regimes pesquisados, para 97, em 167. De fato, em 1800 quase todos os regimes eram autocracias. O número de democracias então subiu na segunda metade do século 19, saltou ao final da Primeira Guerra Mundial, recuou acentuadamente nos anos 30 e começo dos anos 40, voltou a saltar no final da Segunda Guerra Mundial, subiu com firmeza até 1988 e depois passou por uma explosão, nos anos 90 e começo dos 2000. Nesse período, o número de autocracias despencou, com a queda da União Soviética, e quando as falhas das ditaduras se tornaram mais evidentes. Infelizmente, de 1990 para cá, cerca de 50 Estados vêm recebendo a classificação "anocracia", ou seja, são considerados como politicamente caóticos.

    O número de países classificados como soberanos cresceu muito, especialmente de 1945 para cá., Assim, é sensato que nos concentremos na proporção de regimes democráticos, no planeta. Também é possível correlacionar essa proporção à razão entre a produção mundial e o comércio internacional. (Não por coincidência, outros indicadores de globalização —movimento de pessoas e de capital - também se correlacionam estreitamente com o comércio internacional).

    Essa correlação, embora menos que perfeita, é bastante estreita. O final do século 19 e o começo do século 20 foram um período de globalização e democratização. Os anos 20 e 30 foram, por outro lado, um período de recuo para a globalização e a democracia. Os anos 50 e 60 foram um período de estabilidade relativa nas duas frentes (já que a abertura das economias dos países de alta renda foi compensada pelo fechamento das economias da maioria dos países que conquistaram sua independência naquela era.) A globalização ressurgiu nos anos 70, seguida pela democratização. Além da globalização, o outro indicador forte de democratização foi a vitória das democracias, nas guerras mundiais e na guerra fria. Altas no número de países democráticos se seguiram a essas vitórias.

    Em resumo, a revolução industrial conduziu em última análise a uma revolução política, da autocracia à democracia. Além disso, períodos de globalização podem ser associados à difusão da democracia, e períodos de redução na globalização à tendência inversa.

    Isso não surpreende. Como argumentou Benjamin Friedman, de Harvard, períodos de prosperidade reforçam a democratização, e vice-versa. Desde 1820, a renda per capita mundial real cresceu em 1.300%, e ainda mais nos países de alta renda. Com o progresso das economias, cresce a necessidade de educação. Mudanças como essas, e, infelizmente, as mobilizações em massa para a guerra industrializada, reforçam as demandas por inclusão política.

    Pelo lado oposto, as crises financeiras que destruíram a globalização nos anos 30 e a prejudicaram depois de 2008 criaram pobreza, insegurança e ira. Sentimentos como esses não são conducentes à confiança necessária a uma democracia saudável. No mínimo, a democracia requer confiança em que os vencedores não usarão o poder que detêm temporariamente para destruir os perdedores. Se a confiança desaparece, a política se torna venenosa.

    Essa conexão não é apenas empírica. Democracia e capitalismo repousam sobre um ideal de igualdade; todos podem compartilhar das decisões políticas e lutar pelo melhor resultado que puderem atingir no mercado. Essas liberdades eram revolucionárias, há não muito tempo.

    Mas conflitos profundos também existem. A política democrática depende da solidariedade; os capitalistas não se preocupam com nacionalidade. A democracia é local; o capitalismo é essencialmente mundial. A política democrática tem por fundamento a igualdade entre os cidadãos; o capitalismo pouco se incomoda com a distribuição das riquezas. A democracia afirma que todos os cidadãos têm voz; o capitalismo confere vozes muito mais altas aos ricos. Os eleitorados desejam alguma segurança econômica; o capitalismo é propenso a ciclos de expansão e contração.

    As tensões entre a democracia nacional e o capitalismo mundial podem ser ruinosas, como a década de 30 provou. Mas a História também demonstra que os dois sistemas podem funcionar juntos, ainda que desconfortavelmente.

    Isso não equivale a argumentar que todas as economias de mercado são democracias ou que todas as economias de mercado devem ser globalizadas. Mas significa argumentar que democracias estáveis também estão dotadas ao menos de economias de mercado razoavelmente abertas. Não existe modo alternativo de administrar o funcionamento de sociedades complexas que se tenha provado funcional. O objetivo agora deve ser o de administrar o capitalismo de forma a que ele apoie a democracia, e administrar a democracia de forma a que ela faça com que o capitalismo mundial funcione melhor para todos. No momento, estamos arruinando esse casamento. Precisamos nos sair muito melhor.

    Tradução de PAULO MIGLIACCI

    martin wolf

    É comentarista chefe de Economia no jornal britânico 'Financial Times'. Participa do Fórum de Davos desde 1999 e do Conselho Internacional de Mídia desde 2006.
    Escreve às quartas.

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