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    Martin Wolf

    Bancos centrais sozinhos são incapazes de produzir sistema financeiro estável

    24/10/2017 22h10

    Yin Bogu/Xinhua
    FMI manifestou confiança de que Christine Lagarde pode continuar à frente da instituição
    Christine Lagarde, diretora do FMI

    "As perspectivas econômicas favoráveis, especialmente o ímpeto forte na zona do euro e nos mercados emergentes liderados pela Índia e China, continuam a servir como uma base forte para a estabilidade financeira mundial".

    Foi com essa declaração que o Fundo Monetário Internacional (FMI) abriu seu "Relatório Sobre a Estabilidade Financeira Mundial" em abril de 2007. A visão benigna foi publicada às vésperas da crise financeira de 2009, a mais devastadora em quase oito décadas. Por isso, a visão relatório é classificada, vista em retrospecto, como um erro de julgamento espetacular.

    O FMI está determinado a não cometer novamente um erro dessa ordem. Resta saber se as preocupações expressas no relatório mais recente sobre a estabilidade financeira mundial são bem fundadas ou se a instituição está sendo alarmista. É igualmente importante avaliar quais seriam implicações das preocupações expressas no relatório, especialmente para as políticas públicas.

    O argumento que embasa o relatório é o de que "os riscos de curto prazo para a estabilidade financeira continuam a cair" mas "as vulnerabilidades de médio prazo estão em ascensão".

    O retorno do crescimento econômico mundial, combinado com condições monetárias e financeiras confortáveis e inflação lenta, reforça a busca por rendimento e o apetite por risco por parte dos investidores. Com os prêmios de risco de mercado e de crédito em seus níveis mais baixos em dez anos, as avaliações dos ativos estão sujeitas a uma "descompressão" dos prêmios por risco –em termos mais claros, um crash.

    Como aponta o relatório, choques de crédito e no mercado financeiro em escala completamente plausível ante os marcos históricos poderiam ter grande impacto negativo sobre a economia mundial. "Uma súbita expansão dos prêmios por risco comprimidos, quedas nos preços dos ativos e altas na volatilidade poderiam levar a uma desaceleração financeira mundial", afirma o relatório. Muita gente acredita que a margem de manobra da política monetária seja limitada. O resultado poderia ser uma recessão mundial menos profunda que, mas tão intratável quanto, a de 2009.

    Um dos elementos desses riscos é a compressão de rendimentos. Os rendimentos dos instrumentos de renda fixa classificados em grau de investimento despencaram de 2007 para cá, e quase nenhum deles rende mais de 4% ao ano. Isso também encorajou maiores influxos de capital para os, e assim maior captação pelos, países emergentes. Os influxos de capital de investimento não residente atingiram US$ 205 bilhões de janeiro a agosto de 2017, e devem chegar a US$ 300 bilhões no ano, mais de duas vezes o total de 2015-2016.

    Além disso, argumenta o FMI, os baixos rendimentos, a compressão dos spreads de risco e o financiamento abundante estão encorajando um acúmulo de dívidas nos balanços das empresas. Reversões nesses spreads poderiam causar abalos: para que eles retornassem à media que tinham entre 2000 e 2004, os prêmios por risco e de liquidez teriam de subir em 2%, para papéis com grau de investimento. A volatilidade do mercado também mostra alta compressão.

    Talvez mais importante, o endividamento continua a subir no mundo inteiro, especialmente na China. Nos países de alta renda, a posição líquida de ativos do setor privado melhorou um pouco desde a crise, mas a dos governos piorou. Além disso, os ativos no momento estão sendo avaliados em nível alto, possivelmente insustentável. A amortização de dívidas não é um grande peso, com taxas de juros como as atuais. Mas isso poderia mudar em caso de alta acentuada de juros. Alem disso, em diversas economias o peso da amortização de dívidas no setor privado não financeiro é superior à média histórica, especialmente na China mas também na Austrália e Canadá.

    Esse tipo de análise expõe motivos de preocupação. Isso ajuda; quanto mais as pessoas se preocuparem, mais seguro estará o sistema. Mas também é essencial determinar as implicações da fragilidade que o FMI descreve com tamanha clareza. Eu identificaria quatro.

    Primeiro, os investidores precisam ser muito cautelosos.

    Segundo, o sistema financeiro precisa ter a capacidade de encarar mudanças nos preços dos ativos sem explodir a economia mundial. Essa afirmação deveria ser desnecessária. Parte essencial de chegar a isso é reduzir o endividamento e reforçar de outras maneiras os intermediários financeiros, especialmente os bancos. Isso de fato vem acontecendo, mas em minha opinião em grau claramente insuficiente.

    Terceiro, a geração de demanda suficiente para absorver a oferta potencial se tornou dependente demais de um crescimento insustentável no crédito e dívida, e também do consumo (nos países de alta renda) e de investimentos perdulários (na China).

    Podemos romper essa conexão de diversas maneiras. Uma delas é redistribuir renda, por meio do sistema tributário, dos poupadores para os consumidores. Outra é reforçar os incentivos ao investimento, especialmente por empresas lucrativas. Outra ainda é remover o tratamento preferencial que dívidas recebem no sistema tributário e depender mais de financiamento via mercado de capitais, em toda a economia. Uma última ideia seria depender mais de gastos e captação governamentais, especialmente investimento em obras públicas.

    Por fim, não deveríamos concluir que os bancos centrais podem abandonar a prioridade de estabilizar a economia em favor da meta, potencialmente conflitante, de estabilizar o sistema financeiro. Um motivo é que a política monetária é um instrumento bruto demais para essa segunda finalidade. Objeção mais fundamental é que não podemos dizer ao povo que é preciso viver em uma economia deflacionária porque essa é a única maneira de impedir que o sistema financeiro exploda. A resposta do povo seria, corretamente, que essa prioridade está errada. Da mesma forma, garantir que os credores obtenham os retornos que acreditam merecer não é função dos bancos centrais. Se os governos acreditam que os credores merecem o que desejam, deveriam mudar os impostos para que isso se torne possível. De novo, se as autoridades acreditam que o setor financeiro continua excessivamente instável, deveriam regulamentá-lo.

    Criticar o sucesso obtido pelos bancos centrais em reflacionar nossas economias depois dos graves danos causados pela crise, porque isso criou os atuais riscos financeiros, não é uma reação válida às ações deles. Mas é, de fato, uma crítica extremamente válida ao setor financeiro. E também uma crítica válida ao insucesso dos governos em corrigir as muitas fragilidades que ainda resultam em excessos financeiros. Os bancos centrais fizeram o trabalho deles. Infelizmente, quase ninguém mais o seu.

    martin wolf

    É comentarista chefe de Economia no jornal britânico 'Financial Times'. Participa do Fórum de Davos desde 1999 e do Conselho Internacional de Mídia desde 2006.
    Escreve às quartas.

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