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    Martin Wolf

    O desafio da autocracia leninista de Xi Jinping

    01/11/2017 10h29

    "Quer vocês gostem, quer não, a História está do nosso lado. Nós os sepultaremos!": foi isso que Nikita Khrushchev, então primeiro secretário do Partido Comunista da União Soviética, previu sobre o futuro em 1956.

    Xi Jinping se provou muito mais cauteloso. Mas ainda assim fez afirmações ousadas. "O socialismo com características chinesas cruzou o limiar de uma nova era", disse o secretário geral do Partido Comunista chinês durante 19º congresso nacional de sua agremiação, na semana passada. "Ele oferece uma nova opção a outros países e nações que desejem acelerar seu desenvolvimento e ao mesmo tempo preservar a independência". O sistema político leninista não foi consignado à pilha de cinzas da história. E agora parece ter voltado a ser um modelo.

    A afirmação de Khrushchev soa ridícula, hoje. Mas na época não era essa a sensação que causava. A industrialização da União Soviética a havia ajudado a derrotar os exércitos nazistas. O lançamento do Sputnik, em 1957, indicava que o país se havia tornado rival tecnológico dos Estados Unidos. No entanto, 35 anos depois da bazófia de Khrushchev, o partido comunista da União Soviética e sua economia entraram em colapso. Esse continua a ser o acontecimento político mais importante desde a Segunda Guerra Mundial. Enquanto isso, o acontecimento econômico mais importante é a ascensão da China, da pobreza ao status de país de renda média. É por conta dela que Xi pode falar da China como modelo.

    Mas como o sistema que fracassou em Moscou deu certo em Pequim? A grande diferença entre os dois resultados se deve às escolhas brilhantes de Deng Xiaoping. O líder máximo chinês depois da morte de Mao Tsé-Tung manteve o sistema político leninista —acima de tudo, o papel político dominante do Partido Comunista—, mas liberou a economia. Sua determinação de manter o controle do partido sobre o país foi demonstrada pelas decisões que tomou durante aquilo que os chineses chamam de "o incidente de 4 de junho" e que os ocidentais conhecem como "massacre da Praça Tiananmen", em 1989. Mas sua resolução de levar adiante a reforma econômica jamais vacilou. E os resultados foram espetaculares.

    Determinar se a União Soviética poderia ter seguido o mesmo percurso é algo que está aberto a debate. Mas a realidade é que não o seguiu. Como resultado, a Rússia moderna não sabe de que modo relembrar a revolução de outubro acontecida um século atrás: o presidente Vladimir Putin é um autocrata, mas o sistema comunista se foi. Xi também é autocrata. Seu domínio sobre o partido foi exibido durante o recente congresso da agremiação. Mas ele é, igualmente, herdeiro da tradição leninista. Sua legitimidade depende da legitimidade do partido.

    Quais são as implicações do casamento entre leninismo e economia de mercado promovido pela China? Os chineses de fato aprenderam com o Ocidente, na economia. Mas rejeitam a moderna política ocidental. Sob o comando de Xi, a China vem se tornando cada vez mais autocrática e menos liberal. O Partido Comunista da China serve como versão moderna da soberania imperial e da burocracia meritocrática da China antiga. Mas é o partido que exerce o papel de imperador. Com isso, quem controla o partido, controla tudo. É necessário acrescentar que viradas autocráticas aconteceram em outros lugares, especialmente a Rússia. Aqueles que imaginavam que a queda da União Soviética prenunciasse o triunfo duradouro da democracia ocidental estavam errados.

    Essa combinação entre política leninista e economia de mercado continuará a funcionar, à medida que a China se desenvolve? A resposta tem de ser: não sabemos ainda. Uma resposta positiva poderia ser a de que esse sistema se enquadra às tradições chinesas, e é comandado por burocratas excepcionalmente capazes. Até agora, funcionou espetacularmente. Mas também existem respostas negativas. Uma é que o partido está acima da lei. Isso leva ao poder sem lei. Outra é que a corrupção que Xi vem tentando combater é inerente a um sistema no qual não existem controles da base sobre o topo. Ainda outra é que, em longo prazo, essa realidade solapará o dinamismo econômico. Outra mais é que, à medida que a economia e o nível de educação avançarem, o desejo popular por maior participação na política se tornará incontornável. Em longo prazo, o domínio de um homem sobre um partido, e de um partido sobre toda a China, será incapaz de sobreviver.

    Tudo isso é para o futuro. A posição imediata é bastante clara. A China está emergindo como superpotência econômica, na forma de uma autocracia leninista controlada por um só homem. O restante do mundo não tem escolha a não ser cooperar pacificamente com a potência em ascensão. Devemos cuidar juntos de nosso planeta, promover o desenvolvimento e manter a estabilidade econômica. Ao mesmo tempo, aqueles de nós que acreditam na democracia liberal e no valor duradouro do Estado de Direito, na liberdade individual e no direito de todos a participar da vida pública, precisam reconhecer que a China não só é mas também se vê como um adversário ideológico significativo.

    O desafio envolve duas frentes.

    Primeiro, o Ocidente tem de manter uma margem de superioridade tecnológica e econômica mas ao mesmo tempo evitar a criação de um relacionamento indevidamente antagônico com a China de Xi. A China é nossa parceira. Mas não é nossa amiga.

    Segundo, e mais importante, o Ocidente (por mais frágil que esteja hoje) precisa reconhecer —e aprender com o fato de que a administração de sua economia e de sua política vem sendo insatisfatória há anos, ou talvez décadas. O Ocidente permitiu que seu sistema financeiro encalhasse em uma imensa crise. Insiste em investir menos do que deveria em seu futuro. Alguns de seus países mais importantes, especialmente os Estados Unidos, permitiram que uma vasta disparidade econômica emergisse entre os ganhadores e os perdedores. E, não menos importante, o Ocidente permitiu que sua política fosse consumida pelas mentiras e pelo ódio.

    Xi fala no "grande rejuvenescimento da nação chinesa". O Ocidente também precisa rejuvenescer. Não pode fazê-lo copiando a descida à autocracia a que parte grande demais do planeta sucumbiu nos últimos anos. Não deve abandonar seus valores centrais, mas reavivá-los. É preciso que o Ocidente crie economias muito mais inclusivas e dinâmicas, que revitalize sua política e reestabeleça uma vez mais o frágil equilíbrio entre o nacional e o global, o democrático e o tecnocrático, que é essencial para a saúde das democracias sofisticadas. A autocracia é uma norma perene na história humana. Não devemos permitir que ela tenha a última palavra.

    Tradução de PAULO MIGLIACCI

    martin wolf

    É comentarista chefe de Economia no jornal britânico 'Financial Times'. Participa do Fórum de Davos desde 1999 e do Conselho Internacional de Mídia desde 2006.
    Escreve às quartas.

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