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    Martin Wolf

    O plano de impostos dos republicanos foi criado para os plutocratas

    22/11/2017 11h19

    Jonathan Ernst/Reuters
    O presidente dos EUA, Donald Trump, acena ao embarcar no Air Force One em Manila, nas Filipinas, após sua visita oficial ao país
    O presidente dos EUA, Donald Trump, acena ao embarcar em Manila, nas Filipinas

    Como é que um partido político dedicado aos interesses materiais do 0,1% mais rico na pirâmide de renda consegue conquistar e reter o poder em uma democracia de sufrágio universal?

    É esse o desafio que o Partido Republicano precisa enfrentar nos Estados Unidos. E a resposta que a agremiação encontrou foi o "populismo plutocrático".

    A estratégia encontrou sucesso politicamente, mas é perigosa. Conduziu Donad Trump à presidência. O fracasso dele pode levar ao poder alguém mais perigoso e mais determinado. Isso importa para os Estados Unidos, e dado o poderio norte-americano, também importa ao resto do mundo.

    Os projetos de lei tributária que estão tramitando nas duas casas do Congresso norte-americano demonstram os objetivos primários do Partido Republicano. De acordo com o Centro de Prioridades Orçamentárias e Políticas, na versão do projeto que está sendo debatida na Câmara dos Deputados, cerca de 45% da redução nos impostos, em 2027, se destinará a domicílios com renda superior a US$ 500 mil anuais (menos de 1% dos contribuintes), e 38% a domicílios com renda superior a US$ 1 milhão ao ano (0,3% dos contribuintes).

    Na versão do Senado, mais cautelosa, domicílios com renda inferior a US$ 75 mil anuais seriam os mais prejudicados. Estamos falando simplesmente de uma reforma em favor dos plutocratas.

    E há muito mais. A reforma pode elevar o deficit fiscal cumulativo em US$ 1,5 trilhão ao longo dos próximos dez anos. No entanto, de acordo com o Serviço Orçamentário do Congresso, independente e respeitado, a posição fiscal dos Estados Unidos já está em deterioração, com gastos públicos que devem subir de 21% do PIB (Produto Interno Bruto) em 2017 para 25% do PIB no período 2028-2037.

    Os cortes de impostos planejados agravariam a pressão por corte de gastos. O resultado desejado pelos republicanos é cortar severamente todos os gastos discricionários do governo federal não relacionados à defesa, bem como os gastos com a saúde e previdência social.

    Em resumo, portanto, estamos diante de um esforço determinado para transferir recursos da classe trabalhadora, média e até média-alta para o topo da pirâmide, o que viria acompanhado por um grande aumento na insegurança econômica para a vasta maioria dos cidadãos.

    Seria lícito perguntar como é que um partido que tem objetivos como esses conseguiu conquistar o poder.

    A primeira parte da resposta envolve encontrar intelectuais que argumentem que todos se beneficiarão de políticas que na verdade beneficiam muito pouca gente e de maneira ostensiva. A teoria econômica do supply-side, com seu foco estreito em cortes de impostos, vem sendo a principal ferramenta empregada, porque justifica diretamente o corte de impostos dos muito ricos. Mas não é verdade que os cortes de impostos da era Reagan deflagraram uma elevação no patamar de crescimento econômico potencial dos Estados Unidos. Como a economia norte-americana está próxima do pleno emprego, os benefícios do estímulo fiscal seriam especialmente pequenos.

    Os defensores dos cortes propostos argumentam que a redução dos impostos das empresas conduzirá a um grande aumento no investimento empresarial. Há dois poderosos argumentos contrários: a proporção dos lucros empresariais pós-impostos no PIB quase dobrou nos Estados Unidos desde o começo do século, sem efeitos benéficos sobre o ritmo de investimento. E o Reino Unido reduziu progressivamente a alíquota do imposto pago por suas empresas de 30% para 19% de 2008 para cá, sem benefício identificável para o investimento.

    Reduzir a alíquota do imposto pago pelas empresas é simplesmente um mecanismo para dar dinheiro aos acionistas. Se o objetivo é elevar o investimento, bastaria torná-lo plenamente dedutível dos impostos.

    A proposta de revogação do imposto sobre heranças, que só beneficia os herdeiros dos 0,2% mais ricos entre os espólios dos Estados Unidos, realmente entrega o jogo, do ponto de vista do supply-side: quem vai querer argumentar que as pessoas viverão mais se a morte não for tributada?

    A segunda parte da resposta é abusar das leis. Uma forma de fazê-lo foi dar à riqueza o papel dominante que ela exerce na política atual. Outra é restringir os votos de pessoas que poderiam votar contra os interesses dos plutocratas ou mesmo privá-las de seu direito de voto.

    A terceira parte é fomentar cisões culturais e étnicas, o que ocasionalmente é descrito como "estratégia sulista", a virada do velho sul dos Estados Unidos em favor dos republicanos depois que os democratas impuseram as leis dos direitos civis. Mas essa é uma visão muito limitada da estratégia em questão.

    O mais interessante é o quanto ela ecoa a situação do sul dos Estados Unidos antes da guerra civil. A região vivia em extrema desigualdade, não só na população como um todo, que incluía os escravos, mas entre os brancos livres. Um dos indicadores padrão de desigualdade cresceu em 70% entre os brancos do sul, de 1774 a 1860.

    Como apontam os acadêmicos Peter Lindert e Jeffrey Williamson, "qualquer historiador que esteja em busca de dados sobre o surgimento de uma subclasse trabalhadora branca no velho sul os encontrará nesse indicador".

    O censo de 1860 também demonstrou que o patrimônio médio do 1% mais rico dos sulistas era mais de três superior ao do 1% mais rico dos nortistas. Mas o sul era muito menos dinâmico.

    O sul era uma plutocracia. Na guerra civil dos Estados Unidos, cujo objetivo declarado para os sulistas era defender a escravidão, quase 300 mil soldados confederados morreram. A maioria deles não tinha escravos. Mas seus temores raciais e culturais justificavam o sacrifício. E essa mobilização terminou por trazer derrota e morte a todos. Nada revela melhor a potência política das questões de identidade.

    Uma ameaça não muito diferente existe para os plutocratas atuais. A economia e a política do populismo plutocrático estimularam a ira cultural, étnica e nacionalista da base do partido. Demagogos habilidosos conseguem explorar essa ira para seus fins. Trump pelo menos continua a ser um servo dos plutocratas. Mas Steve Bannon, antigo assessor do presidente, está em busca de alguém que promova o populismo de direita sem os seus elementos mais escancaradamente plutocráticos.

    Os plutocratas estão cavalgando um tigre faminto. O populismo plutocrático da elite republicana resultou em Trump. Isso não será esquecido.

    Se os projetos de lei tributária que estão tramitando forem aprovados, as tensões certamente se agravarão nos Estados Unidos. Desigualdade ao modo latino-americano resulta em política ao estilo latino-americano.

    Os Estados Unidos que o mundo um dia conheceu estão se afogando em uma maré de cobiça injustificável e aparentemente ilimitada. Estamos todos condenados a viver com as infelizes consequências desse fato.

    Tradução de PAULO MIGLIACCI

    martin wolf

    É comentarista chefe de Economia no jornal britânico 'Financial Times'. Participa do Fórum de Davos desde 1999 e do Conselho Internacional de Mídia desde 2006.
    Escreve às quartas.

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