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    Mary del Priore

    Com novos protagonistas, coronelismo segue matando

    16/10/2016 02h00

    Em 1956, revoltado pela falta de interesse despertada por relatórios que davam conta dos assassinatos que envolviam as eleições no interior do Brasil, Mário Palmério, deputado federal e educador, escreveu "Vila dos Confins": obra prima.

    Ao longo da história, o leitor acompanha as peripécias de um jovem político para driblar atentados. "- Sou um deputado federal –que diabo! E não se mata gente assim sem mais nem menos... O município é meu". E para garantir tal posse valia tudo: tocaia à beira das estradas, traições, capangas armados, rondas noturnas dos chamados "bate-paus" até ser "acabado a tiros".

    Tudo bem... Era ficção. Mas na vida real não faltaram descrições sobre homicídios ao vivo e a cores. O deputado e advogado Waldemar Pequeno, por exemplo, registrou episódio ocorrido, nos anos 30, com um amigo e com ele durante as eleições para a Câmara de Aimorés (MG). O amigo acolheu um moço que lhe pedira um prato de comida. "Servido este e uma xícara de café, retirara-se o homem para, protegido pela escuridão da noite, disparar a arma contra quem, alvo fácil à luz do lampião da sala, o havia agasalhado e alimentado".

    Avisado que sua morte fora encomendada e que seria executado por "capanga peitado", Waldemar foi caçado por nove pistoleiros nas matas do Rio Doce. Ficou mais de uma semana alimentando-se do que encontrava e disputando frutas com pássaros. Conseguiu safar-se e se apresentou à casa de um juiz de Direito para escapar de ser morto.

    Coisa do interior? Não. Houve "duelo" até no cenário da capital. Estrelando Tenório Cavalcanti e Antônio Carlos Magalhães. Numa ocasião, Cavalcanti, ainda no mandato de deputado federal, discursava na Câmara. Ele acusava o presidente do Banco do Brasil, Clemente Mariani, de desvio de verbas. Antônio Carlos, então deputado e baiano como Mariani, defendera o conterrâneo respondendo que "vossa excelência pode dizer isso e mais coisas, mas na verdade o que vossa excelência é mesmo é um protetor do jogo e do lenocínio, porque é um ladrão." Tenório Cavalcante, sacou o seu revólver e berrou: "Vai morrer agora mesmo!".

    Colegas correram para tentar impedir o assassinato enquanto outros fugiram do plenário. Antônio Carlos, tremendo de medo, teve uma incontinência urinária. Mesmo assim, gritava: "Atira." Tenório, por fim, resolveu não atirar. Rindo da situação em que ACM se encontrava, recolheu o revólver, dizendo que "só matava homem".

    Representante do coronelismo na Baixada Fluminense, Tenório ou "o homem da Capa Preta" provou que as práticas violentas do interior, podiam migrar para a periferia das grandes capitais. Junto à população local, ele protelava ou executava sentenças, com auxílio de "Lurdinha", nome de sua metralhadora.

    A história das execuções sumárias vem de longe. Segundo sociólogos, elas se multiplicaram nos anos 60 e 70, com a criação de esquadrões da morte que agiam sob o lema "bandido bom é bandido morto". Policiais se transformaram, então, em agenciadores dos serviços para vereadores, deputados e prefeitos que, por sua vez, solucionavam problemas de seus financiadores. Delegados trabalhavam junto dando cobertura.

    Assim, políticos ligados à teia do crime continuaram a fortalecer, pela violência, sua base política e eleitoral. Todos eles ávidos para ter acesso às populações encurraladas por degradantes índices de pobreza, educação, saúde e segurança. Se o coronelismo existe desde os tempos da República Velha, ele não morreu. Hoje, com novo nome, técnicas e protagonistas, ele segue matando. Foram mais de 90 execuções durante o último processo eleitoral.

    Historiadora e autora de mais de 47 livros sobre História do Brasil, dá aulas na Pós-Graduação de História da Universidade Salgado de Oliveira. Escrever aos domingos sobre as eleições do passado, desde os tempos do Império até os primeiros anos da República.

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