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    Matias Spektor

    Nunca mais

    10/12/2014 02h00

    Quando a Corte Interamericana de Direitos Humanos responsabilizou o Estado brasileiro por omitir, negligenciar e tolerar a violência contra a mulher, abriu-se o caminho para a Lei Maria da Penha.

    Quando a corte julgou o Estado responsável pelo desaparecimento forçado de pessoas no Araguaia, abriu-se o caminho para Comissão da Verdade.

    Ambos os casos apontam para um procedimento comum: o uso estratégico de normas produzidas lá fora como instrumento de batalha política aqui dentro.

    Num país de presidencialismo de coalizão –onde o ocupante do Planalto precisa gerir grupos heterogêneos com capacidade de veto–, trata-se de coisa muito útil.

    Ainda ministro da Fazenda, por exemplo, FHC talhou o arcabouço jurídico do Mercosul como escudo contra a força protecionista da indústria e de seus representantes no Senado Federal. Ao amarrar o país a um acordo de livre comércio, fazia política anti-inflacionária.

    Durante a campanha pela reeleição, Dilma também jogou o jogo. Quando viu Marina Silva conceder (e em seguida retirar) apoio nominal aos direitos LGBT, correu para defender a união civil para parceiros do mesmo sexo e condenar os crimes de homofobia, coisa que evitara fazer até então.

    Num gesto para a militância (da qual tanto precisava), o governo facilitou uma inédita resolução sobre diversidade sexual na ONU.

    Neste segundo mandato, Dilma terá diante de si numerosas oportunidades para usar normas internacionais a serviço do "Muda Mais".

    A Corte Interamericana já emitiu medidas provisórias contra o Brasil no caso do presídio de Pedrinhas, permitindo reformas no Maranhão.

    O julgamento de crimes vinculados ao "Petrolão" em cortes estrangeiras forçará o BNDES a aceitar a Lei de Acesso à Informação que até hoje empurra com a barriga.

    Ao ratificar o Tratado Internacional de Comércio de Armas, a presidente ajudaria a evitar a tragédia dos 56 mil homicídios que tivemos no ano passado, 70% dos quais por arma de fogo.

    Ao abraçar as normas internacionais de direitos sexuais e reprodutivos, o governo ajudaria a lidar de maneira inteligente com o milhão de abortos clandestinos por ano que matam uma cidadã brasileira a cada dois dias.

    Se fizesse essas coisas, a presidente reeleita mandaria um sinal contra a desfaçatez.

    Há poucas semanas, a ONU soltou um relatório alarmante sobre nosso sistema prisional, confirmado pouco depois pelo Ipea. O Brasil tem meio milhão de pessoas na prisão, sendo que 40% delas nunca foram julgadas. É um horror de proporções dantescas.

    Quando a ONU apresentou o relatório, o governo viveu um dos capítulos mais penosos da política externa da Nova República.

    Em Genebra, nossa diplomacia tomou a palavra para criticar o texto naquele burocratês bolorento herdado do regime militar. Nenhuma resposta foi dada, nenhum seguimento foi prometido. Quem paga, claro, é o cidadão.

    Neste segundo mandato, a presidente tem a chance de repetir o "Nunca Mais".

    matias spektor

    É doutor pela Universidade de Oxford e ensina relações internacionais na FGV. Escreve às quintas.

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