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    Matias Spektor

    Lampreia e Camilión

    18/02/2016 02h00

    A morte os levou com dez dias de diferença. Se soubessem, teriam gargalhado diante da ironia.

    Oscar Camilión era diplomata argentino. Aos 30 anos, redigiu a primeira proposta formal de aliança estratégica entre o Brasil e a Argentina. Quando um golpe de Estado mudou o jogo em Buenos Aires, ele virou chefe de Redação do influente jornal "Clarín".

    À época, o Brasil anunciou o início de uma obra gigantesca com o Paraguai sobre o rio Paraná. Era o tipo de empreitada que poderia mudar o fluxo das águas rio abaixo, em território argentino. A Casa Rosada esperneou.

    Nos anos seguintes, a construção de Itaipu virou a mais grave crise diplomática da história argentino-brasileira. Aqui, o regime militar foi tocando a obra. Lá, houve momentos de risco real de uma escalada militar.

    Preferindo evitar esse desfecho, a ditadura argentina pediu ajuda a Camilión, nomeando-o embaixador no Brasil.

    Durante os primeiros meses em Brasília, ele não conseguiu diálogo algum com o governo Geisel. Lançou, então, uma ofensiva na imprensa, cujo resultado foi um êxito retumbante. Em poucos meses, os editoriais sobre Itaipu de "Veja", "Estadão", "O Globo", "Jornal do Brasil" e Folha passaram a manifestar simpatia pela posição argentina.

    Geisel e seu chanceler passaram a detestar Camilión. Alguém chegou a sugerir declará-lo persona non grata. Mas o governo brasileiro terminou optando por outro caminho. Nomeou Luiz Felipe Lampreia como secretário de imprensa do Itamaraty para liderar uma contraofensiva nos jornais.

    Lampreia e Camilión viraram competidores ferozes. No entanto, nos bastidores eles construíram um canal pessoal e informal que terminou sendo crucial para a fórmula que resolveu o conflito: Itaipu seria construída, mas a Argentina viraria sócia formal do acordo entre o Brasil e o Paraguai.

    Na Argentina, Camilión ganhou fama de herói e virou chanceler, cargo que ocupou até renunciar em oposição à invasão das ilhas Malvinas.

    Lampreia seguiu seu caminho, e eles perderam contato. Vinte anos depois, encontraram-se quando um virou chanceler de FHC e, o outro, ministro da Defesa de Carlos Menem. Mais uma vez, viviam às turras, mantendo posições quase sempre divergentes. Só que a confiança interpessoal já estava assentada, servindo como reserva de boa-vontade para resolver os problemas.

    Camilión teve uma aposentadoria dura: além da pecha de ser ministro de uma ditadura brutal, foi condenado pelo crime de contrabando de armas. Lampreia, ao contrário, viveu uma aposentadoria tranquila. Mas eles tinham algo em comum: ao falar do embate de Itaipu, seus olhos ganhavam vida.

    matias spektor

    É doutor pela Universidade de Oxford e ensina relações internacionais na FGV. Escreve às quintas.

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