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    Maurício Stycer

    Terapeuta e super-herói

    30/03/2014 03h00

    Encantado com uma mulher que ganha a vida fazendo malabarismo numa esquina de São Paulo, o psicanalista Carlo Antonini a convida para ir a seu apartamento. Assim que entra na sala, Isa se impressiona com a quantidade de livros que vê. "Mas essa é a minha biblioteca mais importante", diz ele, abrindo a janela e mostrando o prédio em frente.

    Depois de alguns instantes, ela vai direto ao ponto: "Então, quer o quê, moço? Transar comigo?" E ele: "Não. Quer dizer, sim. Não sei. Talvez. Quem sabe... Eu acho você bonita lá na esquina".

    A cena ajuda a caracterizar rapidamente o personagem central de "Psi", série que a HBO Latin America estreou no último domingo (23). Antonini é um psicanalista entediado, mais interessado na vida que pulsa nas ruas do que nas histórias que ouve no consultório.

    O tipo foi esboçado em dois romances do psicanalista e colunista da Folha Contardo Calligaris, "O Conto do Amor" (2008) e "A Mulher de Vermelho e Branco" (2011), e desenvolvido pelo próprio autor, em parceria com o roteirista Thiago Dottori, a convite da HBO. Vistos os dois primeiros episódios, o Antonini da TV parece mais denso, original e problemático do que o da literatura.

    Recém-separado, com consultório em São Paulo, o psicanalista vai encontrar, a cada episódio, no entorno do seu próprio cotidiano, temas que o fascinam e o colocam na dupla posição de terapeuta e super-herói. É uma caracterização que distingue a série totalmente de "Sessão de Terapia", do GNT.

    Neste duplo papel ele resolverá o drama de uma menina autista, no primeiro episódio, e da garota, namorada de seu enteado, que encontra prazer na automutilação, no segundo. Antonini é capaz de desarmar um homem desesperado convencendo-o a beber, assim como corta o próprio braço com uma faca enquanto dirige para impressionar uma adolescente.

    Este terapeuta com poderes extraordinários tem um cacoete: está sempre fazendo citações eruditas e mencionando nomes que o espectador eventualmente não conhece.

    "Freud dizia que a psicanálise deveria ser tão radical e precisa quanto a cirurgia", observa enquanto pratica tiro. "O que incomodava mesmo Freud é essa excitação provocada pela música, que é inexplicável", diz no cemitério, onde conversa sobre música dodecafônica.

    Antonini também é capaz de tiradas espirituosas. Conversando com a ex-mulher, ele observa: "As crianças correm mais risco indo passear no shopping do que quando um bêbado invade a minha casa". Ela pergunta: "E que risco eles correm de passear comigo no shopping?" "De ficarem idiotas, né?", responde.

    Emilio de Mello é um excelente ator e, a julgar pelos dois primeiros episódios, está sugerindo que o seu Antonini é ainda mais complexo do que a história mostrou até agora. Claudia Ohana, no papel da colega de trabalho e amiga Valentina, que ele chama de Valente, também está muito bem.

    Além de uma história original que permite muitos desdobramentos, "Psi" tem, como outras produções brasileiras da HBO, bom roteiro, excelente acabamento e direção de bom gosto. O elenco, infelizmente, é muito desigual e personagens secundários, mas essenciais na trama, não têm atores com todos os recursos necessários para vivê-los.

    mauricio stycer

    É jornalista, repórter e crítico e autor de 'Adeus, Controle Remoto'.
    Escreve aos domingos.

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