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    Maurício Stycer

    'Além do Tempo' e Rocambole

    25/10/2015 02h00

    Ambientada no final do século 19, a primeira fase de "Além do Tempo" reservou para os últimos capítulos, exibidos nesta semana, uma sequência intensa de revelações, reviravoltas e surpresas.

    Foram tantas as novidades na novela das 18h da Globo que até uma personagem, Dorotéia (Julia Lemmertz), se surpreendeu: "Meu Deus, que história mais rocambolesca. Onde já se viu? A criadinha é neta da orgulhosa da condessa? Ela deve ter cortado os pulsos de desgosto. Folhetim perde!"

    A reflexão irônica de Elizabeth Jhin sobre a própria novela que escreveu coube com perfeição na boca de Dorotéia, uma arrivista decadente, mas ilustrada.

    Muito do sucesso da trama se deveu justamente à habilidade da autora de oferecer um folhetim clássico, cuidando para prolongar a emoção do público até a reta final, quando provocou a catarse com cenas de tirar o fôlego.

    Sem pudor, Elizabeth Jhin incluiu até uma sequência em que a vilã é abandonada no altar pelo mocinho, após a descoberta de seus ardis, seguida por outra em que ele, a cavalo, resgata a heroína abandonada.

    No seu livro essencial sobre o assunto, "Folhetim, Uma História" (Companhia das Letras, 1996), Marlyse Meyer recorre a um dos clássicos do "puro desvario imaginativo", o romance "As Proezas de Rocambole", de Ponson du Terrail (1829-1871), para refletir sobre alguns aspectos do gênero.

    "Se o termo rocambolesco acaba sendo o estereótipo que define toda e qualquer aventura malucamente inverossímil, isso não quer dizer que esta seja forçosamente ficcional", escreve ela.

    Passando rapidamente em revista uma série de eventos violentos e escandalosos ocorridos no Brasil e no mundo entre as décadas de 1970 e 80 do século 20, Marlyse Meyer observa: "O que me parece igualmente espantoso é a atualidade de Rocambole, assim como permanece pertinente o significado pleno do seu conceito-chave".

    Uma análise mais rápida sugere que o sucesso da primeira fase de "Além do Tempo" seria um reflexo do cansaço do público com tramas hiper-realistas, como as que têm sido exibidas no horário mais nobre, das 21h30.

    É consenso no meio que um dos grandes erros do setor de teledramaturgia da Globo foi ter escalado, em sequência, três novelas com temática realista pesada –"Império" (encerrada em março de 2015), "Babilônia" (concluída em agosto) e "A Regra do Jogo".

    Para além do sucesso da concorrência ("Os Dez Mandamentos"), a queda da audiência no horário nobre da emissora líder seria, segundo esse raciocínio, culpa da overdose de realidade. "Chega de violência!" "Chega de favela!", bradam os comentaristas na internet.

    Intérprete de Pedro, o grande vilão da primeira fase de "Além do Tempo", o ator Emilio Dantas expressou este sentimento em uma entrevista: "Esse apego das pessoas à novela reflete a falta que a gente sente do folhetim, do novelão, mais do que qualquer outra coisa".

    Pode até ser verdade, mas acho que cabe pensar também neste outro aspecto: os exageros da trama rocambolesca de "Além do Tempo" fazem sentido para o espectador nos dias de hoje. Não é apenas alívio que a fantasia do folhetim oferece.

    mauricio stycer

    É jornalista, repórter e crítico e autor de 'Adeus, Controle Remoto'.
    Escreve aos domingos.

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