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    Maurício Stycer

    Vendo Ivana chorar na TV

    01/11/2015 02h00

    Ivana tem 9 anos. No primeiro episódio de "MasterChef Júnior" descobrimos que ela fala português, inglês e espanhol. O site da Band informa que ela nasceu em Atlanta (EUA), filha de mãe colombiana e de pai brasileiro. Cozinha desde os 6. "Seu ponto forte é o tempero, mas não gosta de jeito nenhum de pimenta."

    No segundo episódio, exibido na última terça-feira (27), Ivana chorou. Três vezes. A primeira quando teve dificuldades para desenrolar um rolo de plástico filme. Desesperada, pediu ajuda a Ana Paula Padrão, que a acalmou.

    Chorou novamente quando apresentou para Erick Jacquin a sua empanada de frango. O chef francês observou que tinha muita massa e pouco recheio dentro. Vendo a tristeza da menina, ele esclareceu: "É bom. Não é ruim, não. Só estou dando uma dica". Ofereceu um lenço para ela enxugar as lágrimas e perguntou: "Quer me dar um abraço?".

    Na sequência, Henrique Fogaça quis saber por que ela estava chorando. E Ivana, soluçando de tanto chorar, explicou: "Porque o jeito que eu fechei não ficou bom." Paola Carosella se aproximou para consolá-la. "Não tem um jeito único de fechar empanada". O chef brasileiro acrescentou: "Você fez do seu jeito".

    É impossível não se comover com criança chorando. Daí o meu espanto, assistindo ao programa. Não senti nada vendo Ivana chorar. Antes que me acusem de ter o coração de pedra, vou tentar explicar.

    "MasterChef" não é um programa de culinária. Para o público, a competição tem dois atrativos principais, ambos levemente sádicos. Um é ver a dificuldade enfrentada pelos candidatos no cumprimento das tarefas propostas. O outro, a possibilidade de assistir de camarote à avaliação severa (e debochada) do trio de jurados.

    Os participantes se submetem a esta exposição não para aprender a cozinhar, mas pelos prêmios em jogo e pela possibilidade de ficarem famosos. No caso da versão com crianças, os chefs estão pegando mais leve, sendo mais "fofos", mas seguem, cada um com seu estilo, interpretando os seus papéis no programa.

    E as crianças, por que elas estão ali? Essa é a questão que me incomoda. Mesmo acreditando que todas estejam por vontade própria, elas são capazes de entender que o comportamento e o jeito delas, muito mais do que as empanadas, é o que atrai a audiência?

    Elas sabem que são personagens de um programa de entretenimento destinado ao público adulto? Não custa lembrar que a atração é exibida originalmente às terças, entre 22h30 e 1h da manhã. Talvez este seja o maior erro.

    A onda de comentários de cunho sexual publicados nas redes sociais na noite da estreia, dirigidos a duas das crianças, é repugnante, mas mostra bem o terreno onde a Band está pisando. Dez dias depois deste episódio, a emissora anunciou que exibirá reprises dos programas aos sábados, às 15h.

    As crianças têm consciência do impacto da exposição a que estão submetidas? Um dia depois da estreia já havia material disponível no Google sobre a vida pessoal de alguns candidatos e de seus pais.

    Em janeiro, a Globo estreia o seu "The Voice Kids". Assim como a competição de culinária da Band, esta disputa musical é um formato estrangeiro, cujo sucesso levou ao desenvolvimento da versão infantil. Vem mais choro por aí.

    mauricio stycer

    É jornalista, repórter e crítico e autor de 'Adeus, Controle Remoto'.
    Escreve aos domingos.

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