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    Maurício Stycer

    Discurso de ódio

    17/04/2016 02h01

    Por 19 minutos e 33 segundos, na tarde de 23 de junho de 2015, uma terça-feira, o "Cidade Alerta" (Record) exibiu cenas, captadas a partir de um helicóptero, de uma perseguição policial a dois homens em uma motocicleta, em São Paulo.

    Narrando os acontecimentos, o apresentador Marcelo Rezende diz: "São dois ladrões numa moto. A Rocam [ronda ostensiva com apoio de motocicletas] já tá em cima. Lá vai sair tiro, hein. Vai sair tiro! Porque se é nos Estados Unidos, atira! O homem da Rocam quase cai (...). Atira, meu camarada, é bandido!"

    Com os dois homens já caídos no chão, um policial se aproxima e atira neles. Rezende festeja: "Se ele atirou é porque o bandido estava armado. E ele fez muito bem''.

    Escrevi a respeito na coluna "O horror, ao vivo", publicada na Ilustrada em 28/6/2015. Em janeiro de 2016, o Ministério Público Federal, em São Paulo, informado pela ONG Intervozes, ajuizou uma ação civil pública contra a Record e a União.

    O procurador Pedro Antonio de Oliveira Machado considera que a narração de Marcelo Rezende "ultrapassa os limites da mera descrição jornalística de fato cotidiano, atuando como elemento propulsor de incitação à violência em desfavor dos suspeitos".

    Machado vê "um discurso de ódio" nas palavras do apresentador. Cita como exemplo essa passagem: "Eu espero, já de antemão, que não me venha com essa história de corregedoria pro policial, Comissão de Direitos Humanos, porque o policial, sozinho, contra dois bandidos, com tudo ao vivo..."

    Questionada sobre o assunto antes que a ação fosse ajuizada, a Record argumentou que as imagens da perseguição foram transmitidas ao vivo e, por isso, não havia a possibilidade de edição ou conhecimento do desfecho.

    O procurador rebate o argumento lembrando que Rezende pediu à produção que as imagens fossem reprisadas, o que ocorreu inúmeras vezes. "O caráter informativo foi abandonado e passou-se a tratar o triste episódio, violador de direito humano, como um entretenimento", escreve Machado.

    "Fugindo totalmente do caráter supostamente jornalístico da programação, Marcelo Rezende, como que roteirista de uma atração ficcional, transforma a perseguição, o policial e os cidadãos em fuga em personagens da trama", observa.

    A Record argumentou também que estava apenas cumprindo seu dever constitucional de informar e prestar serviço jornalístico. E classifica a representação como "discordância profissional/ideológica" entre o procurador e o apresentador.

    Um aspecto interessante da ação é o esforço de Machado em classificar a União como corré. Na visão do procurador, o Ministério das Comunicações falhou em seu papel de fiscalização da programação. O governo refutou a acusação. Afirmou que tomou as medidas ao seu alcance e pediu para ser excluído da ação.

    Em uma primeira decisão sobre o assunto, agora em abril, a juíza Renata Coelho Padilha determinou que a União esclareça o que fez, de fato, em relação ao "Cidade Alerta" e deu prazo, também, para a Record se manifestar.

    É um caso bem interessante para acompanhar, ainda mais porque Rezende considera "Cidade Alerta" como "o programa da família brasileira".

    mauricio stycer

    É jornalista, repórter e crítico e autor de 'Adeus, Controle Remoto'.
    Escreve aos domingos.

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