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    Maurício Stycer

    Coronéis na tela

    24/04/2016 02h00

    A histórica sessão da Câmara dos Deputados, exibida no último domingo pelas principais redes de TV, causou espanto e choque. Menos pelo resultado da votação, previsto por muitos, o desconforto foi produzido pelo espetáculo oferecido por centenas de parlamentares votando em nome de Deus, da família e de seus currais eleitorais.

    Parte do incômodo causado pelo show do impeachment decorre do fato que, ao vermos os representantes do povo em ação, estamos de certa forma nos enxergando refletidos naquele Parlamento.

    Este efeito de espelho está na raiz de um fenômeno correlato, que tem vitimado a novela "Velho Chico". Parte do público está rejeitando a caracterização que Antônio Fagundes está dando ao protagonista da trama, o coronel Afrânio de Sá Ribeiro.

    Nos primeiros 24 capítulos, o personagem foi vivido por Rodrigo Santoro. Estudante de direito em Salvador, hedonista, Afrânio se viu obrigado pela mãe a voltar para a fazenda da família depois da morte do pai.

    Em uma cena didática, ele parou o carro conversível numa encruzilhada na estrada. Uma via o levaria de volta ao amor deixado em Salvador. A outra, o carregava para o interior. Optou por esta.

    Na fazenda, o jovem advogado foi engolido pelo destino. Virou coronel. Fez coisas horríveis com a filha. Mandou matar e destruir o seu principal inimigo. Mas não perdeu o tom de voz e a educação adquiridos na juventude.

    Entre sábado e segunda, a história deu um salto brusco de 28 anos. Santoro deu lugar a Fagundes e o coronel, calejado pelo tempo, se mostrou transformado. O sotaque está mais acentuado, os gestos são mais grosseiros e o figurino é exagerado.

    Afrânio deixou de ser um tipo aceitável para virar um arquétipo do que há de pior em parte do Brasil. Para muitos, vê-lo na tela incomoda tanto quanto assistir a certos políticos votando no Parlamento.

    Jair Bolsonaro (PSC-RJ), hoje com números que variam de 6% a 8% das intenções de voto para presidente, segundo o Datafolha, personifica o crescimento da extrema direita no Brasil.

    Dos 81 senadores e 513 deputados que formam o Congresso brasileiro, poucos mereceram tanto espaço e destaque na televisão nos últimos cinco anos quanto ele. Do finado "CQC", da Band, ao "Superpop", da RedeTV!, passando por Raul Gil, no SBT, o político se tornou figura habitual na tela.

    Não se trata, creio, de afinidade com o discurso radical do deputado. A sua onipresença na televisão ocorre por uma razão simples e utilitária: causar barulho. Contar com "o ilustre e polêmico" Bolsonaro, como disse uma vez Marcelo Tas, é garantia de discussões quentes.

    Que fique claro. Considero que a TV aberta no Brasil tem a obrigação de promover debates e contrapor pensamentos conflitantes, mesmo de quem não comunga de ideais democráticos.

    Não é disso que estou falando aqui. Bolsonaro frequentemente é chamado apenas para causar barulho e render alguns pontinhos no Ibope das emissoras.

    Não acho que a televisão seja responsável pelo crescimento de Bolsonaro nas pesquisas eleitorais. Mas é seguro que, ao dar visibilidade extraordinária ao deputado, mesmo que na condição de "polêmico", o ajudou muito.

    mauricio stycer

    É jornalista, repórter e crítico e autor de 'Adeus, Controle Remoto'.
    Escreve aos domingos.

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