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    Maurício Stycer

    A peruca do Fagundes

    29/05/2016 02h10

    No ar há 11 semanas, "Velho Chico" é uma novela ousada na forma e no conteúdo. A trama de Benedito Ruy Barbosa, dirigida por Luiz Fernando Carvalho, gira em torno de um coronel baiano à moda antiga, espécie de imperador da região onde vive.

    Afrânio de Sá Ribeiro, o coronel Saruê, impõe as regras na política e na economia do lugar. É dono de uma enorme fazenda produtora de frutas para exportação, mantém os principais vereadores e o prefeito no bolso, inflige seus desejos à Justiça e à polícia e pune com violência eventuais contestações às suas vontades.

    Carvalho descreve o protagonista da novela como "uma mistura de Donald Trump com os Sarneys da vida, ACM (Antônio Carlos Magalhães), Carlos Menem, todos os nossos latino-americanos, metade galãs, metade presidentes da República".

    "São políticos que faziam plástica, pintavam o cabelo, tinham esse lado de galã mexicano. Que Ronald Reagan também tinha. Esse cara [Saruê] assimila tudo isso e dá à novela essa eletricidade do tragicômico e, às vezes, do patético", disse em entrevista ao UOL.

    Tipo ancestral, Saruê nada de braçada no século 21. Em sua encenação, Carvalho cria intencionalmente um desconforto ao apresentar o personagem com roupas extravagantes, de outra época, sempre bronzeado e escondendo os cabelos brancos com uma bizarra peruca.

    No atual momento da trama, o coronel se vê questionado em vários campos. A filha e o neto tentam convencê-lo a adotar práticas mais sustentáveis e modernas na fazenda. A mulher está cansada do seu jeito autoritário. O genro, político, começa a dar sinais de que pretende tomar o seu lugar. Uma cooperativa de agricultores afronta os seus métodos.

    Ambicioso, Carvalho enxerga em "Velho Chico" uma oportunidade de discutir o desequilíbrio entre as riquezas naturais e o seu manejo incompetente, bem como a oposição entre os que desejam manter tudo como está e os que buscam algumas mudanças.

    Como seria de se esperar em um folhetim, o diretor trata de expor esses conflitos dentro do âmbito familiar —a contraposição do arcaísmo rural, simbolizado pelo coronel Saruê, com as novas gerações, representadas por sua filha e neto.

    De certa forma é incômodo ver, pela novela, que esse tema não está superado no Brasil. Carvalho torna o mal-estar ainda maior ao optar
    por uma encenação nada ortodoxa, quase barroca, que trata os personagens como mitos, arquétipos.

    Os figurinos incomuns, os planos longos, cinematográficos, os enquadramentos originais, o volume menor de ação, a trilha sonora onipresente, tudo isso contribui para um estranhamento e eventual rejeição de "Velho Chico".

    A audiência não está espetacular, mas não é a pior já vista no horário. Nas redes sociais e em críticas em sites e jornais, pede-se mais drama e romance, mais ação, didatismo e até mudanças no figurino.

    Mas a maior reclamação ainda é sobre a peruca que Antonio Fagundes usa na caracterização de Saruê. Diante de tantas questões relevantes levantadas pela novela, o adereço na cabeça do personagem parece ser o assunto principal. É uma tristeza.

    mauricio stycer

    É jornalista, repórter e crítico e autor de 'Adeus, Controle Remoto'.
    Escreve aos domingos.

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