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    Maurício Stycer

    'Velho Chico' marcou pela ambição estética e a relevância cultural

    01/10/2016 23h50

    Encerrada nesta sexta-feira (30), "Velho Chico" é um marco na história recente da TV aberta brasileira. Tanto por seu tema quanto por sua estética, a novela lembrou como a teledramaturgia da Globo, em alguns momentos, é capaz de combinar entretenimento com relevância cultural e propor reflexões sobre a realidade do país.

    Projeto antigo do decano Benedito Ruy Barbosa, foi desenvolvido inicialmente com a ajuda de sua filha, Edmara Barbosa, que se afastou depois de 30 capítulos.

    Quem escreveu a maioria dos 173 episódios foi seu neto, Bruno Luperi, de apenas 28 anos, um iniciante em matéria de telenovelas.

    Coube a Luiz Fernando Carvalho, talvez o diretor com maiores ambições artísticas e o currículo mais recheado de trabalhos memoráveis dentro da Globo, a tarefa de tocar o projeto.

    Carvalho ignorou os modelos tradicionais e apostou em "reeducar o olhar" do público com uma narrativa "poética" para os padrões da TV –planos longos, contemplativos, interpretações "teatrais", figurinos não convencionais, fotografia de cinema etc.

    Conversei com Carvalho diversas vezes nestes últimos seis meses. Reproduzo abaixo algumas reflexões inéditas do diretor sobre como enxerga o seu trabalho.

    "Não faço da televisão um bico. Acredito que ainda exista muita gente que depende de um espetáculo televisivo, de uma catarse televisiva, dos sentidos que uma narrativa possa tocar, sob o ponto de vista educacional até. Uma música, um enquadramento, uma atuação, uma fotografia.... Absolutamente todos os elementos que constituem a linguagem audiovisual são um modo de reeducar o olhar do espectador."

    "Trago este sentimento como uma missão maior, que vai muito além do que simplesmente arrebanhar telespectadores passivos. É uma entrega que caminha de mãos dadas com a responsabilidade de formar cidadãos."

    "Essa responsabilidade pelo imaginário do país é inevitável. Você tem um espaço de concessão pública, está entrando na casa das pessoas, um país continental, constituído por centenas de cruzamentos éticos e estéticos, um país ainda em construção. Faz-se necessário criarmos um vínculo de cumplicidade ética com essa responsabilidade. A ética é mãe dessa estética toda aí."

    "Toda e qualquer narrativa cumpre uma função mítica. As narrativas curam. São um objeto mágico. A televisão cumpre essa função, ocupando esse lugar na relação com quem assiste aos conteúdos. Não que as imagens sejam alienantes, mas que sejam emocionantes, vitais!"

    "Não que sejam ditatoriais, oferecendo pouco diálogo com a imaginação de quem assiste, e que pregam: 'Veja isso porque estou mostrando'."

    "O exercício sensível com a imaginação do espectador é que cria a sensação de verdade das novelas. Onde você coloca a câmera, o figurino, de como os personagens se relacionam no espaço e na luz, tudo isso é pra cutucar a imaginação do espectador, levá-lo ao mundo da imaginação narrativa, exatamente como quando lemos um livro ou ouvimos uma música."

    "É um processo muito delicado e muitas vezes impalpável, fugidio. Quando esse conjunto está em equilíbrio –coisa rara– os artistas cumprem sua função espiritual, com força capaz de retirar do mundo uma visão hegemônica, fria; uma noção de tempo e espaço muito limitada, produzindo consciência, desenvolvimento humano, curando o mundo de algumas dores."

    mauricio stycer

    É jornalista, repórter e crítico e autor de 'Adeus, Controle Remoto'.
    Escreve aos domingos.

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