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    Maurício Stycer

    Rotina de limitações

    09/10/2016 02h00

    O momento de alto consumo de séries de TV, acompanhando de uma certa euforia em relação ao valor cultural de várias delas, coloca em posição de destaque uma figura que a indústria cinematográfica norte-americana quase sempre deixou em segundo plano: o roteirista.

    A ideia de autoria em Hollywood sempre esteve associada ao diretor. O roteirista, ainda que muito bem remunerado, não tem controle nenhum sobre o que escreve. Se um roteiro é rejeitado pelo diretor ou produtor do filme, o procedimento mais comum é pedir que outro roteirista o reescreva.

    As séries, ao contrário, são obras de roteiristas. Os chamados "showrunners", cujos nomes encabeçam os créditos, são normalmente roteiristas que se tornaram também produtores e cuidam de todos os aspectos do programa –do texto à escalação do elenco, da escolha dos diretores à edição final.

    Diferentemente do que ocorre na indústria do cinema, há sempre um roteirista no set de gravações das séries, com chance de opinar e, eventualmente, reescrever falas na hora.

    Em "Homens Difíceis" (editora Aleph, 2014), o jornalista Brett Martin traçou o perfil de alguns destes showrunners, como David Chase ("Família Soprano"), Vince Gilligan ("Breaking Bad") e Matthew Weiner ("Mad Men").

    O livro mostra como estas grandes séries nasceram da visão de autores, e não de diretores ou produtores, e como estes roteiristas, ao se ocuparem de todo o processo de produção, foram capazes de imprimir uma cara própria (ou uma "voz", como gostam de dizer) a estes programas.

    No recém-lançado "Na Sala de Roteiristas" (Zahar, 256 págs., R$ 49,90), Christina Kallas vai além e procura esmiuçar a rotina dos autores e de seus assistentes, contratados com bons salários para dar ideias, apresentar esboços e escrever versões de roteiros.

    Kallas propõe o termo "narrativa cinematográfica longa" para definir estas produções de alta qualidade. Na sua visão, uma temporada de "House of Cards" pode ser vista como "um filme de 13 horas" com estrutura narrativa não-convencional (múltiplos fios narrativos, eliminação de explicações de causa e efeito, maior ambiguidade etc).

    Com atuação na área acadêmica e sindical, Kallas reproduz entrevistas que fez com 13 roteiristas experientes. Ainda que, em alguns trechos, as conversas escorreguem para detalhes capazes de interessar apenas aos profissionais do ramo, o livro propõe discussões que dizem respeito também ao espectador.

    O mais interessante é observar que, excluindo algumas séries de fato excepcionais, os roteiristas enfrentam muitas dificuldades para sair do rame-rame de programas convencionais.

    São vários os relatos no livro de restrições temáticas, imposições no desenvolvimento de histórias ou personagens, pressão para baixar o nível e obrigação de criar em função dos intervalos comerciais.

    Mulheres não traem seus maridos nas séries americanas, por exemplo. Num caso excepcional, Betty Draper traiu Don em "Mad Men", mas a personagem se tornou odiada pelos espectadores.

    Ao transcrever os relatos de roteiristas inseguros, que escrevem com medo de perder o emprego, o livro também expõe a falta de glamour da profissão.

    Assim como ocorre na TV brasileira, "Na Sala de Roteiristas" mostra que o conservadorismo dos executivos e a preguiça do espectador ainda têm muito peso na criação da TV americana.

    mauricio stycer

    É jornalista, repórter e crítico e autor de 'Adeus, Controle Remoto'.
    Escreve aos domingos.

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