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    Maurício Stycer

    Homenagens da Globo a Chacrinha são justas, mas não é certo torná-lo santo

    10/09/2017 02h00

    João Miguel/Globo
    Isis Valverde posa para a capa da revista "Joyce Pascowitch" de setembro
    Stepan Nercessian caracterizado como Chacrinha para o especial "Chacrinha, o Eterno Guerreiro"

    O centenário de Abelardo Barbosa (1917-1988), que se comemora agora em 30 de setembro, está servindo de pretexto para variadas homenagens. Só a Globo, na semana passada, exibiu quatro, todas em tom de exaltação, sem qualquer registro crítico.

    A principal delas foi o especial "Chacrinha - O Eterno Guerreiro". Cantores consagrados, de diversas gerações, de Roberto Carlos a Anitta, desfilaram pelo auditório comandado por Stepan Nercessian, numa caracterização impressionante.

    O especial, porém, "limpou" tudo que havia de mais polêmico em Chacrinha, como as humilhações a que submetia os calouros, os closes em detalhes íntimos das chacretes e o deboche dos jurados.

    O elenco musical do seu programa era um espelho da indústria fonográfica da época, equilibrando-se entre os cantores de "prestígio" e os "bregas". Esta tensão parece dissolvida nos dias de hoje em que a música sertaneja e romântica é hegemônica.

    O "Conversa com Bial", inteiramente dedicado a falar de Chacrinha, teve o mérito de lembrar disso. O programa convidou para números musicais o cantor Byafra e a dupla Jane e Herondy –participantes "de raiz" do "Cassino" na década de 1980.

    O telejornal "Bom Dia Brasil" exibiu durante dois dias reportagens especiais festejando Chacrinha. Numa delas, lembrou do seu papel como "um incentivador da música brasileira", o que é uma afirmação correta, mas incompleta sem a lembrança de que foi constantemente acusado de cobrar "jabá".

    Chacrinha
    Denilson Monteiro, Eduardo Nasife
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    O livro "Chacrinha "" A Biografia", de Denílson Monteiro, trata abertamente do assunto, mostrando que ele conviveu com questionamentos a esta prática desde os tempos do rádio, na década de 1950.

    Na sua biografia, "O Livro do Boni", José Bonifácio de Oliveira Sobrinho também enfrenta a questão. O ex-executivo da Globo conta que teve uma discussão feia com o apresentador por causa da acusação de que cobrava "por fora" dos músicos que iam ao programa. "Não sou ladrão. Não sou ladrão", teria gritado Chacrinha.

    Em entrevista a Bial, Boni fez um raro comentário crítico: "Abelardo era cínico, isolado, e não acreditava em ninguém. Nada a ver com o personagem que ele criou. A criatura era divertida, mas o criador era um chato de galocha". Esta observação, porém, não foi ao ar, apesar de divulgada pela assessoria de imprensa da Globo na véspera da exibição do programa.

    A entrevista a Bial também não tratou de um episódio importante, relatado no "Livro do Boni". Numa noite de dezembro de 1972, o executivo tirou o programa do ar antes de sua conclusão, em resposta à recusa de Chacrinha em encerrá-lo no horário combinado. Na sequência, o apresentador foi para a emissora Tupi.

    Em sua edição de 20 de dezembro de 1972, a revista "Veja" registrou a opinião de um diretor da Globo (não identificado) sobre o ocorrido: "A saída dele é benéfica, pois nós já não precisamos mais de ibope e sim de qualidade".

    É a época em que começa a busca pelo tal "padrão Globo de qualidade" e Chacrinha não se encaixa na nova imagem que a emissora quer projetar. Não foi o único, diga-se. A comediante Dercy Gonçalves já havia saído um ano antes (ambos voltaram na década de 1980).

    O lugar de Chacrinha como um dos maiores –ou o maior, na visão de alguns– entre os comunicadores da TV brasileira é inquestionável. Mas homenagens não deveriam apagar fatos polêmicos ou tentar reescrever a história.

    *

    ATUALIZAÇÃO: Globo explica corte de crítica de Boni a Chacrinha em entrevista

    Num contexto de homenagens a Chacrinha, o "Conversa com Bial" exibiu um programa dedicado exclusivamente ao apresentador na última terça-feira (5). Um dos entrevistados foi José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o Boni. Em meio a várias lembranças bem-humoradas, o ex-executivo da Globo fez uma observação crítica sobre Abelardo Barbosa (1917-1988).

    "Abelardo era cínico, isolado, e não acreditava em ninguém. Nada a ver com o personagem que ele criou. A criatura era divertida, mas o criador era um chato de galocha", disse Boni.

    O comentário foi incluído no material de divulgação enviado pela Globo a jornalistas, mas acabou cortado no processo de edição do programa. Segundo a emissora informou à Folha, o corte seguiu um procedimento normal e corriqueiro. Outras partes gravadas também ficaram de fora, disse a assessoria da Globo. Dividida em duas partes, a entrevista de Boni a Bial ocupou oito minutos do programa.

    Mencionei o caso na coluna publicada neste domingo. O texto foi enviado ao jornal na quinta-feira (7), ainda sem a resposta da Globo. O que me chamou a atenção é que o corte atingiu o único comentário mais crítico em meio a um clima de celebração e bajulação a Chacrinha.

    Abaixo, o trecho completo que a Globo divulgou sobre a participação no "Conversa com Bial":

    "Abelardo era cínico, isolado, e não acreditava em ninguém. Nada a ver com o personagem que ele criou. A criatura era divertida, mas o criador era um chato de galocha. De qualquer forma, ele tinha uma sensibilidade grande e uma visão do comportamento da massa interessante. Chacrinha nasceu para a televisão: Abelardo sabia planejar o programa e Chacrinha desenrolava aquilo. Abelardo falava com o olho, conversava com o telespectador, não só com um auditório. Ele transpunha a tela e chegava nas pessoas, tudo com uma naturalidade grande e colorida".

    mauricio stycer

    É jornalista, repórter e crítico e autor de 'Adeus, Controle Remoto'.
    Escreve aos domingos.

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