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    Maurício Stycer

    Novelas se arriscam e colocam o espectador no lugar de personagens

    08/10/2017 01h00

    Divulgação
    A atriz Nanda Costa como Sandra Helena em cena da novela 'Pega Pega
    A atriz Nanda Costa como Sandra Helena em cena da novela 'Pega Pega'

    Trama bobinha e vazia que a Globo vem exibindo no horário das 19h, "Pega Pega" inesperadamente saiu da curva esta semana e resolveu encenar, em dois capítulos, uma triste estatística brasileira.

    Um personagem negro, Dom (David Junior), foi abordado por um policial militar, igualmente negro, e preso por estar sem documentos. Não adiantou argumentar que o carro importado, diante do qual estava, era seu. "Ganhou de Papai Noel?", perguntou o PM, em tom de deboche, antes de levá-lo à delegacia.

    De origem humilde, Dom foi adotado, ainda bem criança, por uma ricaça, Sabine (Irene Ravache), e criado na Suíça. Ao voltar ao Rio, localizou a sua família biológica. No momento da prisão, estava com o irmão, Dílson (Ícaro Silva).

    "Isso é abuso de poder", disse Dom ao ser preso. "Calma que é assim mesmo", respondeu o irmão, acostumado a "levar dura" de policiais.

    Em outra cena, Dílson e o pai, Cristovão (Milton Gonçalves), chegam à delegacia e explicam a um policial o que aconteceu: "É que o Dom, meu irmão, ele é negão. Meu pai aqui também, igual a eu. Então, já viu, né? Tava sem documentos".

    Esclarecido o engano, Dom é solto e Cristovão diz: "Infelizmente, a gente sabe que a realidade do país é esta. A lei pra quem é negro e pobre é primeiro prender, pra depois perguntar".

    Em tom didático, a policial Antonia (Vanessa Giácomo) explica: "Isso foi uma arbitrariedade. Não poderia ter acontecido mesmo você estando sem documentos. A corregedoria já está investigando e esses policiais serão punidos".

    E o jogral termina com Dom se dirigindo ao irmão: "Isso é normal, Dílson? Isso acontece sempre com você?". E a resposta: "Não é sempre, mas acontece muito. Principalmente com gente da nossa cor".

    Para se ter uma ideia do alcance desta mensagem, a novela de Claudia Souto tem registrado audiências frequentemente acima dos 30 pontos (cada ponto equivale a 688 mil indivíduos nos 15 mercados aferidos pelo Ibope).

    Ainda que toda a sequência lembre mais a cartilha de uma ONG do que uma criação dramatúrgica, não há como ser contra a divulgação desta campanha em um país tão atrasado em termos de direitos humanos e respeito à diversidade racial.

    "Pega Pega" segue longa tradição de "merchandising social" nas novelas da Globo. Gloria Perez, que já reivindicou, em entrevistas, ter sido a "inventora" da técnica, localiza em "Partido Alto", de 1984, a primeira ação do tipo. Na trama, a autora chamou a atenção para a falta de ônibus em um determinado bairro da zona norte do Rio –e a situação encenada teve impacto real imediato.

    Atualmente, em "A Força do Querer", Gloria desenvolve uma ação bem mais complexa –a da descoberta da transexualidade por parte de uma personagem. A esta altura da novela, perto do fim, Ivana (Carol Duarte) já é Ivan e busca ser compreendido pelos pais, que o rejeitaram inicialmente.

    Um outro personagem, Nonato (Silvero Pereira), é travesti. De dia, vestido como homem, trabalha como motorista, mas, à noite, é a cantora Elis Miranda. Ao longo da trama, tanto Ivana/Ivan quanto Nonato já foram ofendidos e agredidos fisicamente por causa de suas orientações sexuais.

    Desde o início, Gloria tenta, pacientemente, colocar o espectador no lugar de seus dois personagens. É um exercício arriscado nestes tempos de intolerância. Mas a audiência da novela, a melhor no horário desde 2013, mostra que não houve rejeição às tramas. Ao contrário. Neste caso, a boa ação, somada a uma técnica eficiente, compensou.

    mauricio stycer

    É jornalista, repórter e crítico e autor de 'Adeus, Controle Remoto'.
    Escreve aos domingos.

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