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    Maurício Stycer

    'Antenas da Floresta' descreve saga de noticiários locais feitos na Amazônia

    26/11/2017 02h00

    Um amigo me recomendou, muitos anos atrás, que viajasse pelo Brasil para assistir televisão. Como assim? Para conhecer a programação local de canais em diferentes cidades do país, explicou.

    A legislação permite que empresas com o status de geradoras (são algumas centenas no Brasil) produzam conteúdo próprio. Assim, além de reproduzir a programação das grandes redes com as quais são associadas, elas podem exibir material feito localmente.

    Nunca fiz essa viagem, mas já assisti, em vários momentos, trechos de noticiários policiais locais de diferentes cidades, em especial do Nordeste. Diante da violência verbal de alguns apresentadores e da crueza do material que os repórteres exibem, as atrações nacionais que exploram este gênero parecem programas infantis.

    Um livro espetacular, recém-lançado, coloca uma lupa sobre este tipo de jornalismo. "Antenas da Floresta" (Objetiva, 360 págs., R$ 59,90) traz o resultado de três expedições de Elvira Lobato, entre 2015 e 2016, a dezenas de pequenas cidades do Maranhão, Mato Grosso, Tocantins, Pará, Acre e Amazonas.

    A escolha desses Estados tem uma razão de ser. Eles fazem parte da chamada Amazônia Legal e são regidos, desde a década de 1970, por uma legislação especial em matéria de comunicação.

    Enquanto no resto do país apenas as geradoras podem produzir conteúdo próprio, nos nove Estados da Amazônia Legal qualquer pequena retransmissora tem o direito de ocupar até 15% da grade com programação local (cerca de três horas e meia por dia).

    Isso permite, como Elvira constatou, que cidades com menos de 50 mil habitantes tenham duas ou mais emissoras produzindo programas e exibindo anúncios comerciais destinados especificamente às suas comunidades.

    Segundo o seu levantamento, há pelo menos 400 retransmissoras produzindo conteúdo próprio na Amazônia. São todas ligadas a uma grande rede, como Record, SBT, Band e RedeTV!, ou a uma rede regional. Só a Globo não libera o seu sinal a retransmissoras, obrigando que reproduzam o conteúdo produzido pelas geradoras de alcance estadual.

    O objetivo inicial era determinar a propriedade destas empresas. O levantamento concluiu que são de empresários (41%), políticos (21%), Poder Executivo (20%) e igrejas (16%). Não foi possível identificar 2% deles. Mas logo Elvira se deu conta de que "os proprietários das TVs são personagens coadjuvantes nas histórias".

    Ela encontrou a matéria-prima do livro ao visitar esses pequenos canais, abrigados muitas vezes em casas simples, com equipamentos precários, comandados por profissionais abnegados, sem formação universitária, ganhando pequenos salários.

    O conteúdo local é quase sempre jornalístico. E, por razões facilmente explicáveis, programas calcados em notícias policiais.

    "O que dá audiência é a desgraça alheia. Entenda que a desgraça é bem-vinda, desde que a vítima seja o outro", explica Sílvio Delmondes, administrador e apresentador da TV Vale, em Tangará da Serra (MT).

    Antenas da Floresta - A Saga das TVs da Amazônia
    Elvira Lobato De Araujo
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    Muitos profissionais, sem opção, submetem-se à pressão explícita dos políticos que os patrocinam. Outros pulam de cidade em cidade em busca de espaço para se expressar.

    Impressiona no livro o cuidado e a atenção que Elvira dá a cada entrevistado, mostrando a sua realidade e descrevendo, em detalhes, o seu trabalho. Ela reconstitui uma infinidade de reportagens "heroicas" que esses jornalistas guardam como troféus de suas carreiras –algumas cômicas, outras infames.

    "Antenas da Floresta" descortina realidade que vale muito a pena ser conhecida. É um livro essencial.

    mauricio stycer

    É jornalista, repórter e crítico e autor de 'Adeus, Controle Remoto'.
    Escreve aos domingos.

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