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    Melchiades Filho - Melchiades Duarte Porciuncula Filho

    BSB-CGH

    11/03/2013 03h30

    BRASÍLIA - As lembranças são o combustível de que os homens precisam para viver e não importa se elas têm muito ou pouco significado, escreveu Haruki Murakami no simpático "Após o Anoitecer".

    O japonês faz uma curiosa analogia com o fogo. A página de jornal, o ensaio de filosofia, o pôster de revista masculina, o maço de dinheiro –tudo não passa de papel na hora de queimar. A chama não discerne. Consome tudo. Não fica exclamando "Nossa! Isto é Kant!" ou "É a edição de hoje da Folha de S.Paulo!" ou "Que belo par de peitos!". Para o fogo, é tudo papel.

    Com as lembranças, seria a mesma coisa. Lembranças importantes, mais ou menos importantes ou até as bem miúdas: tudo, indiscriminadamente, é material de combustão. Na medida em que podemos utilizar, de acordo com nossas necessidades, as lembranças que temos, sejam elas importantes ou não, conseguimos tocar adiante.

    Lembrei dessas palavras ao tomar a decisão de ir embora de Brasília, e, com isso, ter de me despedir deste espaço admirável –que, três décadas atrás, me capturou adolescente para o jornalismo.

    Memórias de toda espécie se empilham na despedida. Colegas, leitores, políticos, pilantras, tanta gente inteligente que produz pouca inteligência, luas lindas, o horizonte que deixa ver o sol subir e descer, os melhores garçons e os piores motoristas do país, a alternância verde-marrom do cerrado, a reverência exagerada a qualquer autoridade... E notícias, notícias, notícias –de relevância cada vez mais difícil de precisar, dados o ritmo alucinante dos "fatos" e a demanda compulsiva da civilização do tempo real.

    A alegoria de Murakami serve de consolo. Ficam a impressão de que vida e profissão queimam tudo e todos e a esperança de que, do terreno calcinado de lembranças e notícias, tenha brotado algo de substantivo e digno. Obrigado e tchau.

    melchiades filho

    Escreveu até março de 2013

    Foi editor de "Esporte", correspondente em Washington e diretor-executivo da Sucursal de Brasília da Folha. Formou-se em jornalismo e fez pós-graduação em pesquisa de mercado na USP.

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