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    Michel Laub

    Ironia e protestos

    21/06/2013 03h00

    Muita gente vê na ironia uma das culturas dominantes hoje. Nas últimas décadas, com diferenças de conceituação e abordagem, autores como Susan Sontag e David Foster Wallace escreveram sobre essa sensibilidade --ou visão de mundo-- que, num artigo de 2012 (http://goo.gl/Hgt5N), Christy Wampole lamentou ser a essência de uma época vazia.

    Nascida em 1977, Wampole usou como exemplo a tribo dos hipsters, símbolo de certa juventude urbana educada, para descrever um mundo em que sentimentos diretos, aqueles que tornam as relações pessoais mais ricas, são sufocados por distanciamento e esteticismo.

    Os ataques têm alguma graça. O hipster de caricatura, com seu bigode e camisa xadrez, sua autodepreciação calculista, seu gosto afetado que finge ser simplório ou ingênuo, parece blasé demais para falar a sério sobre qualquer coisa.

    Num contexto assim, comenta Wample, até um presente vira uma piada esperta --o que comprovei há pouco, ao fazer aniversário e ganhar coisas como uma paçoca velha e um gibi rasgado do Cebolinha.

    Mas, se tudo no exemplo parece motivado pelo receio (de que o presente diga algo sincero sobre aquela amizade, sobre nosso gosto, sobre quem somos), o fato é que ninguém vive apenas de ironia.

    Esconder-se atrás de humor e estilo não livra ninguém de pagar contas, de se defrontar com sofrimentos pessoais e profissionais.

    Como é comum nesse tipo de crítica, peca-se ao ver indivíduos e costumes de forma unidimensional. Numa resposta a Wampole (http://goo.gl/Doroh ), Judy Berman podia ter explorado melhor um fenômeno visível nas redes sociais: os presentes irônicos de aniversário fazem parte da mesma cultura que trouxe de volta o engajamento político.

    É um paradoxo? Só se aceitarmos a visão unidimensional. Como lembra Berman, parte da juventude acusada de nostalgia paralisante --expressa em citações pop de contestadores e revolucionários, acrescento, e talvez até por isso-- estava nos protestos do Ocupe Wall Street.

    Algo parecido ocorre nas classes brasileiras educadas, que pautam e/ou são pautadas pela insatisfação da periferia: basta um fato politicamente significativo, como as marchas dos últimos dias, para que sumam do mural do Facebook as pílulas de sabedoria do Mussum e os vídeos com cabras cantando Bon Jovi.

    O oposto da ironia é o pensamento literal, cheio de certezas, que em sua pior face deságua na patrulha ideológica, quando não em intolerância religiosa e moral. São culturas também dominantes hoje, por certo. Mas dizer que todo militante é fanático equivale a dizer que toda ironia é cínica, que toda ponderação é diversionismo e covardia.

    Ao contrário do que parece, o caminho do meio é tortuoso. A internet não é apenas um veículo que divulga passeatas de forma rápida e inédita.

    Há algo em sua essência que favorece a mobilização polarizada: porque em geral falamos para grupos que pensam como nós, a tendência é que as ideias circulem sem contraditório, e a competição de quem fala mais alto o que os outros já sabem e querem ouvir torna as palavras gradualmente mais enfáticas, mais raivosas.

    Ocorre que, numa ironia sobre o discurso irônico --típico do moderado cético, com sua mania enfadonha de ver a questão por diversos lados--, não deixa de ser otimista (o contrário da desistência blasé) acreditar que interlocutores estão dispostos a perceber nuances numa hora destas, por mais óbvias que sejam.

    De qualquer forma, vamos lá: 1) condenar excessos policiais não significa defender a baderna; 2) identificar tentativas de infiltração partidária não é criminalizar partidos; 3) distorções graves da democracia representativa não tornam aceitáveis as alternativas (como o fascismo disfarçado de democracia direta).

    No Facebook, igualmente, lamentar o radicalismo tolo não pressupõe tomá-lo sempre ao pé da letra.

    Alguns dos que escreveram posts incendiários contra a ordem foram pacificamente aos protestos. Outros quebraram vidraças. Estive no de segunda-feira e vi ativistas e diletantes, defesa de propostas legítimas --e vitoriosas, no caso das passagens-- e delírios.

    Também havia gente tirando sarro da própria marcha, ao mesmo tempo que apoiava suas causas. Outro falso paradoxo: política nem sempre é algo uniforme, coerente.

    A ironia faz parte de suas manifestações imprevisíveis tanto quanto a utopia, a ação direta e os conflitos.

    michel laub

    Escreveu até julho de 2015

    É escritor e jornalista. Publicou seis romances, entre eles "Diário da queda" (2011) e "A maçã envenenada" (2013).

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