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    Michel Laub

    Morrissey

    08/11/2013 03h00

    Por volta de 1987, quando os Smiths eram minha banda estrangeira preferida, seu cantor e líder Morrissey atacou o então onipresente George Michael com uma frase que cito de cabeça: "Se ele experimentasse viver a minha vida por um minuto, correria até a árvore mais próxima e se enforcaria".

    Talvez involuntariamente, as recém-lançadas memórias de Morrissey ("Autobiography", Penguin Classics) tornam a declaração emblemática. Não posso avaliar os sofrimentos íntimos de George Michael, mas há turbulências públicas o bastante em sua trajetória para intuir que a coisa não foi fácil (como nunca é para ninguém).

    Já Morrissey é um pouco o que se sabe por suas canções: colégios rígidos na infância, medo e fascínio por gangues de rua, inadequação sexual, vegetarianismo, romantismo no sentido clássico do termo, melancolia. Há biografias que iluminam a obra de um artista. Aqui é o contrário: a leitura pode soar tediosa para quem não tem familiaridade com o universo desta figura peculiar.

    Um pouco porque as constantes referências às próprias desgraças não encontram correspondência nos fatos descritos. Manchester é úmida e cinzenta, a classe média baixa inglesa dos anos 1960 e 1970 tinha poucas perspectivas, há perdas e desilusões como de praxe, mas apenas retórica vitimista não torna literariamente dramática uma experiência.

    Resta então a genealogia de uma formação estética, a melhor parte do livro, juntamente com os (raros) detalhes sobre álbuns e composições. De Oscar Wilde a David Bowie, de W.H. Auden e James Dean a New York Dolls, Patti Smith e Lou Reed, as referências de Morrissey sempre dialogam com a esfera comportamental, numa projeção daquilo que ele mesmo se tornaria: um artista que mudou seu meio e seu tempo com uma obra e, tão importante quanto, uma postura.

    No caso, uma mescla de princípios, autoindulgência e ironia. Eu tinha 14 anos em 1987, e claro que só identifiquei o primeiro dos três itens no ataque a George Michael.

    Apenas mais tarde, conhecendo melhor o ethos da cultura pop britânica, percebi que era a sério e não era. Um astro milionário acredita ser a pessoa que mais sofre no mundo, fazendo dessa crença a expressão de uma angústia geracional, de uma sinceridade imaculada frente à hipocrisia reinante no showbiz, mas o tom propositalmente afetado mostra consciência de como tudo pode ser ridículo.

    Tal ambiguidade salvou o cantor do que o tempo quase sempre faz a artistas como ele. O kitsch oferece seus braços gordos e tardios àqueles que, como os Smiths, tornam-se esteio de adolescentes fracos, confusos e sozinhos. Morrissey costumava driblar o perigo em entrevistas como a de 1987 e paródias com a própria iconografia --roupas, flores, gestos, topete.

    "Autobiography" tem um pouco desse humor que suaviza o egocentrismo, em especial no veneno contra desafetos nas gravadoras, na música e na imprensa. Também tem algo da veia lírica do autor, que escreve num registro preciosista e cheio de imagens. Mas em muitos pontos as qualidades são sufocadas pelo rancor, pela mesquinhez dos vereditos, por uma incapacidade juvenil de empatia com a vida não idealizada.

    Minha experiência emocional com os Smiths, digamos assim, está encerrada há tempos. Não sei o quanto dela é conceito, o que aprendi lendo sobre a banda ao longo dos anos, e o quanto é impacto direto de atributos artísticos de recepção mais sensorial. A voz de Morrissey, por exemplo. Ou sua maneira de encaixar temas sombrios em melodias que transformaram a energia do pós-punk num pop solar e glorioso, compostas por parceiros --como o guitarrista Johnny Marr-- de talento igualmente superior.

    O caráter dessa memória afetiva exclui o distanciamento intelectual. Trata-se de um problema quando se lê as memórias de um antigo ídolo. Morrissey continua importante para mim em 1987. Também na carreira solo bem-sucedida, que acompanhei até certo ponto, e em suspensões eventuais e voluntárias da descrença --numa tarde nostálgica ouvindo discos antigos, em apresentações como as que ele fez aqui em 2000 e 2012.

    Só que o livro precisa ser julgado a partir do que sei hoje. Levada ao pé da letra, como o autor parece querer muitas vezes, sua leitura reforça a obviedade de que o tempo passou, e o mundo é tão maior que uma banda de rock, e é triste e bom e engraçado que seja assim.

    michel laub

    Escreveu até julho de 2015

    É escritor e jornalista. Publicou seis romances, entre eles "Diário da queda" (2011) e "A maçã envenenada" (2013).

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